O discurso religioso instalou-se como forma de representação, em particular da extrema-direita, e o seu sucesso é uma das explicações substanciais das mudanças eleitorais de que aquela tem beneficiado.
A linguagem apocalíptica não é novidade no discurso da extrema-direita, como não o é esse populismo que pretende associar pessoalmente cada um dos seus líderes a uma promessa salvífica, a uma “missão” que cumpriria em representação do povo agradecido. Essa forma de afirmação da política como um destino a que se deve obediência percorre-nos por todo o século XX e pelos nossos anos. No entanto, o que é novidade no Sul da Europa, em países de influência católica mas que viveram profundos processos de secularização, como em Portugal, sobretudo como França, algo menos em Espanha e Itália, é o regresso do enunciado místico como núcleo da organização política, imitando os EUA e o Brasil. O discurso religioso instalou-se como forma de representação, em particular da extrema-direita, e o seu sucesso é uma das explicações substanciais das mudanças eleitorais de que aquela tem beneficiado. A potência deste discurso não deve ser subestimada: ele recorre ao reprimido da civilização, os medos ancestrais que sempre convivem connosco; sendo uma crença, situa-se no terreno da irracionalidade e, portanto, não é argumentável; e empossa o chefe de uma transcendência mágica que é o seu cetro. Como o estratagema resulta, vai ser radicalizado, Trump continua a ser disso o farol mundial. O século XXI vai ser o das identidades religiosas e de grandes cruzadas.
A viragem norte-americana
A religiosidade política tem sido utilizada, no Ocidente, por duas tradições. A primeira é a da Igreja Católica, cujas velhas relações com o despotismo do Antigo Regime se prolongou depois na colaboração com as ditaduras europeias, nomeadamente através de Concordatas estabelecendo formas paraconstitucionais de religião oficial. Nalguns casos, exprimiu-se em partido político (as democracias cristãs italiana e bávara), noutros somente em gestão dos rituais de Estado. Mas é a segunda tradição que mais se tem ampliado, a das igrejas evangélicas, em particular a partir do centro irradiante dos Estados Unidos.
Há uma dúzia de anos, o historiador Daniel Williams estudou estas vinculações em “God’s Own Party”. Williams lembra que estas igrejas, enquanto se expandiam, mudaram a sua agenda. Nota, por exemplo, que passaram de uma atitude condescendente ou mesmo de apoio ao direito ao aborto em várias circunstâncias, para uma rejeição militante que veio a transformar o Partido Republicano. Assim, em 1971, a Conferência Baptista do Sul (CBS), a maior igreja dos Estados Unidos, aprovou o aborto por violação, incesto, deformação fetal e até por motivos de “saúde emocional, mental e física da mulher”: Nesse momento, segundo um inquérito conduzido pela sua revista, 71% dos pastores aceitariam o aborto nos casos de violação e incesto. No mesmo sentido, Wallie Criswell, que fora presidente da CBS, comentava em 1973 a sentença do Supremo Tribunal, de maioria republicana, sobre Roe vs. Wade, que legalizara o aborto, dizendo que “sempre pensei que só depois do nascimento da criança e quando tem uma vida separada da mãe é que se converte numa pessoa individual, e por isso sempre achei que deve permitir o que é melhor para a mãe e para o futuro”. Nesses anos, as igrejas evangélicas consideravam que o movimento antiaborto era um assunto dos católicos.
Estes pastores são os empreendedores do século XXI e exploram o seu mercado em benefício pessoal, em dinheiro e em influência
No entanto, havia uma causa que as mobilizava e era determinante nos estados do Sul (as dez maiores igrejas dos EUA eram no Sul e quase todas evangélicas). O Supremo Tribunal tinha decretado em 1954 o fim da segregação racial nas escolas públicas e, em resposta, as escolas religiosas expandiram-se para receber os filhos das famílias racistas (o Ku Klux Klan chegou a ter cinco milhões de membros nesses estados, no início do século). O conflito atiçou-se quando em 1971 o Supremo decidiu retirar as isenções fiscais às escolas que mantivessem a segregação. Sendo impossível persistir nessa discriminação, essas igrejas viraram a sua ação para os movimentos antiaborto, associando-se ao Partido Republicano, primeiro com Nixon e depois com Reagan. Quarenta anos depois, dominam o partido e venceram no Supremo.
A vaga bolsonarista
Quando esta agenda chegou ao Brasil transformou a sua demografia religiosa. Hoje haverá 108 milhões de pessoas que se dizem católicas para 65 milhões evangélicas, mas são estas quem cresce mais depressa, abrindo por ano 14 mil novos templos. A mais poderosa, a Assembleia de Deus, tem 12 milhões de seguidores, e a IURD tem um partido com 44 deputados, jornais e uma rede de televisão, jogando em alianças variadas (fez parte do governo Lula, depois apoiou Bolsonaro, agora volta a negociar com Lula).
A extrema-direita usa estas crenças e converte-se ao seu padrão de comunicação: Bolsonaro, que joga a sua chance presidencial neste eleitorado, faz-se chamar de “Mito” nos comícios; Meloni alimenta-se da direita católica anti-Francisco; e Ventura reclama-se de um mandato divino e integra alguns representantes de uma destas organizações na sua equipa. No entanto, além da instrumentalização direta, o que marca esta vinculação é o efeito de mercado. As igrejas evangélicas não mudam a direita para recuperarem o passado devoto mas para fazerem um negócio. Esta é a sua força: estes pastores são os empreendedores do século XXI e exploram o seu mercado em benefício pessoal, em dinheiro e em influência. A sua norma é o poder pelo poder. Não há no mundo fervor mais alucinado do que esse.
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