Escrito por Contardo Calligaris
Fui convidado pelo Sesc de São Paulo
a abrir, com uma palestra, a Campanha de Conscientização da Violência contra a
Pessoa Idosa. Por que precisamos de um esforço para ter consciência da
violência que é exercida contra os idosos?
No
Brasil, tornou-se frequente que as famílias aceitem que um filho ou uma filha
menores durmam em casa com seus namorados. A gente racionaliza: melhor em casa
do que no carro, ou em outros lugares perigosos.
Obviamente,
essa tolerância esconde uma vontade de controlar e domesticar o desejo dos
adolescentes. Se acontecer em casa, saberemos o que é, certo?
Mesmo
assim, imaginemos que exista hoje uma aceitação da ideia de que filhos
adolescentes têm desejos próprios e, além disso, estão vivendo agora –não estão
apenas se preparando para a vida futura.
Agora,
imagine que um de seus pais ou de seus sogros seja viúvo, separado ou
divorciado, digamos, aos 75 anos. Ele tem uma aposentadoria modesta, e, se ele
morasse com você, seria bom para ele e para você (ele poderia ajudar com as
crianças, que o adoram).
O
idoso tem seu quarto, sua televisão, seus livros, poupa o aluguel e,
"sobretudo", evita a solidão, enquanto você tem a melhor baby-sitter
possível.
Pergunta:
você aceita que seus filhos levem namorados e namoradas para casa, mas, caso seu
pai ou sua mãe ou sogro ou sogra, divorciados, separados ou viúvos, morem com
você, você topa que eles tragam um "namorado ou namorada" para casa e
para cama? Você encara um velho ou uma velha desconhecidos na mesa do café da
manhã?
O
século 20 começou admitindo a existência da sexualidade infantil, continuou
reconhecendo (um pouco) a sexualidade feminina e admitindo (um pouco) a
variedade das orientações sexuais; mas o desejo sexual do idoso continua
obsceno: uma aberração fora de época. O próprio amor entre idosos, para ser
aceito, deve nos parecer "fofo".
Negar
a vida sexual do idoso permite que a indústria farmacêutica e o médico
proponham tratamentos que condenam o idoso à impotência, como se esse efeito
"secundário" não fosse relevante na velhice.
Da
mesma forma, os efeitos colaterais da testosterona na menopausa são tolerados
pelos sintomas que ela melhora (irritabilidade, calores repentinos etc.), mas é
raro que seja considerado o efeito de manter o desejo e a vida sexual da
mulher.
A
atitude diante de alguém de 40 anos seria totalmente diferente: em matéria de
desejo, espera-se do idoso a resignação.
E,
se você acha que o desejo sexual no idoso é uma quimera, considere o seguinte:
entre os lugares onde as doenças sexualmente transmissíveis mais crescem, estão
os asilos para idosos"¦
Ouço
com frequência filhos preocupados com o medo de que o pai ou a mãe idosos caiam
nas mãos de parceiros "aproveitadores", que "certamente"
esperam herdar algo depois da morte do velho ou da velha. Fico perplexo: por que
os amantes no fim da vida seriam aproveitadores? Porque permitem um prazer
carnal do qual os filhos se envergonham? E será que os tais amantes seriam
menos interesseiros do que os filhos, tão preocupados que os pais acabem com
"as reservas"?
Nascemos
prematuros: para vingar, precisamos ser criados numa família, que é um
caldeirão de necessidades, desejos e primeiros afetos fundamentais (prazer,
desamparo, gratidão, ódios, frustrações, gratificações). Ser normal, para um
humano, significa ter constituído, nessa experiência familiar, um complexo de
afetos que moldará o resto de sua vida.
Entre
esses afetos, seria ingênuo não contabilizar a vontade de vingança. Vocês foram
os que me impediram de desejar, de me masturbar, de comprar aquele carrinho
vermelho etc., tudo "pelo meu bem", claro. Vocês diziam que eu não
podia ainda; agora vou dizer que vocês não podem mais.
Como
os idosos não morrem tão cedo, a demência e o Alzheimer são providenciais. Os
adultos adoram decretar a "incapacidade" de seus velhos. Os filhos
sonham com uma curatela dos pais, que é quase sempre abusiva ou desnecessária
(apesar da cautela do Judiciário).
Cuidado,
a violência física e a tentativa de se apoderar dos bens do idoso são apenas a
ponta de um iceberg. A verdadeira violência contra o idoso consiste em negar a
ele a possibilidade de desejar. É nessa negação que se manifesta o prazer
escuso dos filhos quando eles podem regular a vida de quem já regulou a deles.
[Ilustração: Mariza/Mariza/Editoria
de Arte/Folhapress – fonte: www.folha.com.br]
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