quinta-feira, 15 de junho de 2017

Metáforas de Herman Benjamin são epitáfios da Nova República

Ministro Herman Benjamin, que foi relator do julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE

Escrito por
Sérgio Rodrigues

"Eu, como juiz, recuso o papel de coveiro de prova viva. Posso até participar do velório, mas não carrego o caixão."

Das muitas frases lapidares proferidas pelo ministro Herman Benjamin ao longo do infame julgamento do TSE que absolveu a chapa Dilma-Temer, o par acima é o mais brilhante.

A atuação do relator do processo já foi saudada pela imprensa, mas talvez falte examinar melhor as engrenagens que tornam suas frases "lapidares" –literalmente, escritas na pedra, ou seja, feitas para durar.

O juiz como coveiro de prova viva, papel que Benjamin invocou para repudiar, é evidentemente uma metáfora, uma associação de ideias por comparação implícita.

Metáforas são onipresentes na linguagem. Aristóteles, o primeiro a tratar do tema, afirma na "Retórica" que "não há ninguém que na conversação corrente não se sirva delas". Mas sua qualidade varia muito.

Existem as que, de tão gastas pelo uso comum, são classificadas como "mortas". Um exemplo é "orelha de livro". A invenção que um dia possa ter existido nelas se perdeu. São borboletas espetadas no mostruário.

Há também metáforas –talvez a maioria das que circulam "na conversação corrente" de Aristóteles– que conservam parte da expressividade original, mas caminham para o lugar-comum em que morrerão abraçadas à orelha do livro: "Messi é um monstro", "O país está no atoleiro".

Quando de qualidade superior, rasgos poéticos provocados por novas e felizes associações de ideias, metáforas são a mais poderosa das figuras de linguagem. "Meu coração tem catedrais imensas", escreveu Augusto dos Anjos.

Era ao tipo maior que se referia o filósofo espanhol José Ortega y Gasset ao dizer que essa figura de linguagem beira a magia, parecendo "uma ferramenta criativa que Deus esqueceu dentro de uma de Suas criaturas".

Soa exagerado? Um pouco menos quando se sabe que a metáfora é suspeita de ser o próprio princípio fundador da linguagem: a busca de semelhança entre dessemelhantes, palavra e coisa. Como diz Massaud Moisés, "tudo se passaria como se o signo verbal fosse, por natureza, uma metáfora".

Mas será o "coveiro de prova viva" tão bom assim? Vejamos. O elo entre o juiz de toga negra que ignora evidências claras e o empregado do cemitério que enterra quem não morreu é evidente e perturbador. Na ordem natural das coisas, nenhum dos dois devia fazer isso.

Contribui para a força da imagem o terror ancestral que inspira na espécie o enterro de uma pessoa viva, fato raro, mas recorrente –seja como crime cruel, seja como fatalidade.

Como o recalque psicanalítico, o que se enterra vivo sempre volta para nos assombrar. O gato emparedado de Edgar Allan Poe é o símbolo mais sinistro desse retorno.

Registre-se ainda que, ao desdobrar sua metáfora na segunda frase, em que o próprio julgamento aparece transfigurado em velório do qual participa, Benjamin evita o erro mais comum entre os adeptos da linguagem figurada: o de misturar imagens heterogêneas. Permanece fiel até o fim ao quadro lúgubre que pintou.

Como estamos falando de frases lapidares, torna tudo mais interessante o fato de que "lápide", pedra, é também o nome da laje que cobre a sepultura. No caso, "Aqui jaz a Nova República" não parece um mau epitáfio. 




[Foto: Ueslei Marcelino /Reuters  - fonte: www.folha.com.br]

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