segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Abbas Kiarostami. O cinema é o realismo feito magia

 

Com '24 Frames', Abbas Kiarostami aposta numa reinvenção do movimento cinematográfico a partir da quietude das imagens fotográficas. Revelado no Festival de Cannes de 2017, eis um filme fascinante que não perdeu nada da sua dimensão mágica.

 

Caçadores na neve, um quadro de Bruegel, o Velho, reencenado por  1565, Kiarostami

Escrito por João Lopes

O cineasta iraniano, Abbas Kiarostami, faleceu a 4 de julho de 2016, contava 76 anos. Na fase final da sua vida, trabalhou num projeto muito particular, tanto pelos seus pressupostos estéticos como pelas manipulações técnicas que implicava. Partindo de fotografias que foi fazendo ao longo dos anos, Kiarostami quis “imaginar o que teria acontecido antes ou depois” do instante registado por cada imagem. O resultado é uma coleção de breves quadros cinematográficos que viria a receber o título de 24 Frames, tendo sido revelado, postumamente, no Festival de Cannes de 2017. É esse filme que agora chega ao circuito comercial português, e o menos que se pode dizer é que a espera de sete anos está longe de invalidar a sua importância e também a sua singular beleza: 24 Frames é um dos grandes acontecimentos do nosso ano cinematográfico, por certo dos mais enigmáticos, mas também mais fascinantes.

Face à quietude da fotografia, dir-se-ia que estamos perante a consagração do movimento como componente essencial do cinema - afinal, como bem sabemos e o título ambiguamente sugere, antes de ser um fenómeno digital, o cinema fez-se e projetou-se à velocidade de 24 fotogramas por segundo.

Kiarostami contempla as imagens fixas que obteve e, através de efeitos (realmente) especiais, inventa pequenos eventos, uns irónicos, alguns bem humorados, outros tocados por um insólito dramatismo. Por exemplo, uma praia com um mar de ondas serenas e muitas gaivotas a voar transfigura-se num depurado conto trágico: ouve-se um tiro, uma gaivota cai no limiar do areal e, a pouco e pouco, outras gaivotas vão-se aproximando numa espécie de indecifrável ritual fúnebre.

Em boa verdade, a relação com a fotografia não esgota o projeto. Assim, 24 Frames começa com uma pintura: Caçadores na neve, um quadro de Bruegel, o Velho datado de 1565, referência lendária do Renascimento flamengo. O retrato de três homens que regressam de uma caçada, tendo a sua aldeia em fundo, vai ganhando inesperada vida cinematográfica, com alguns pássaros a atravessar a paisagem, um cão a deambular pela neve e o fumo que começa a sair das chaminés.

Há qualquer coisa de zoologia imaginária em tudo isto, já que são vários os segmentos em que aparecem animais (pássaros, renas, leões…) em atividades mais ou menos frenéticas, quase sempre acompanhados por um fenómeno atmosférico - muita chuva, muita neve - que contamina a ação com uma estranha alegria poética. Por vezes, os elementos humanos participam da encenação no interior de um cenário de sugestivos contrastes figurativos: observe-se o grupo de personagens que contempla a Torre Eiffel - não se mexem (são mesmo figuras fotográficas), mas o monumento exibe muitas luzinhas intermitentes, enquanto do lado do nosso olhar vão passando algumas pessoas, uma delas, com uma guitarra, a cantar Les feuilles mortes, de Jacques Prévert.
 
 

O realizador Abbas Kiarostami (1940/2016)

Filosofia e ironia

Retratista dos insondáveis mistérios das relações humanas - recordemos Onde fica a casa do meu amigo? (1987), título que o projetou internacionalmente -, Kiarostami desenvolveu uma filmografia pontuada por este gosto das “séries”, como quem experimenta várias hipóteses suscetíveis de demonstrar um teorema.

Lembremos o caso exemplar de dois títulos também estreados em Cannes: Ten (2002), antologia de uma dezena de diálogos no interior de um carro em movimento nas ruas de Teerão, ou ainda 10 on Ten (2004), rimando claramente com o anterior, agora em tom de reflexão sobre o próprio trabalho narrativo. 24 Frames talvez tenha sido pensado como uma variação filosófica, suavemente irónica, sobre a célebre frase dita num filme de Jean-Luc Godard (O soldado das sombras, 1963), segundo a qual se “a fotografia é a verdade”, então o cinema é “a verdade 24 vezes por segundo.”

Kiarostami é um artista que acredita que há uma verdade visceral em cada imagem, verdade ligada a alguma forma de realismo. Paradoxalmente, isso não exclui, antes potencia, a hipótese de, através dos elementos concretos desse realismo, acedermos a experiências sensoriais de pura magia. Como num “Divertimento” de Mozart, o que conta é a descoberta de uma melodia que não se esgota numa colagem de harmonias, levando-nos a escutar o mundo de maneira diferente - escutar e contemplar.

[Fonte: www.dn.pt]

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