Com '24 Frames', Abbas
Kiarostami aposta numa reinvenção do movimento cinematográfico a partir da
quietude das imagens fotográficas. Revelado no Festival de Cannes de 2017, eis
um filme fascinante que não perdeu nada da sua dimensão mágica.
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Caçadores na neve, um quadro de Bruegel, o Velho, reencenado por 1565, Kiarostami |
Escrito por João Lopes
O cineasta iraniano, Abbas Kiarostami,
faleceu a 4 de julho de 2016, contava 76 anos. Na fase final da sua vida,
trabalhou num projeto muito particular, tanto pelos seus pressupostos estéticos
como pelas manipulações técnicas que implicava. Partindo de fotografias que foi
fazendo ao longo dos anos, Kiarostami quis “imaginar o que teria acontecido
antes ou depois” do instante registado por cada imagem. O resultado é uma
coleção de breves quadros cinematográficos que viria a receber o título de 24 Frames, tendo sido revelado, postumamente, no Festival de Cannes de
2017. É esse filme que agora chega ao circuito comercial português, e o menos
que se pode dizer é que a espera de sete anos está longe de invalidar a sua
importância e também a sua singular beleza: 24 Frames é um dos grandes acontecimentos do nosso ano
cinematográfico, por certo dos mais enigmáticos, mas também mais fascinantes.
Face à quietude da fotografia, dir-se-ia que
estamos perante a consagração do movimento como componente essencial do cinema
- afinal, como bem sabemos e o título ambiguamente sugere, antes de ser um
fenómeno digital, o cinema fez-se e projetou-se à velocidade de 24 fotogramas
por segundo.
Kiarostami contempla as imagens fixas que obteve
e, através de efeitos (realmente) especiais, inventa pequenos eventos, uns
irónicos, alguns bem humorados, outros tocados por um insólito dramatismo. Por
exemplo, uma praia com um mar de ondas serenas e muitas gaivotas a voar
transfigura-se num depurado conto trágico: ouve-se um tiro, uma gaivota cai no
limiar do areal e, a pouco e pouco, outras gaivotas vão-se aproximando numa
espécie de indecifrável ritual fúnebre.
Em boa verdade, a relação com a fotografia não
esgota o projeto. Assim, 24 Frames começa com uma pintura: Caçadores na neve, um quadro de Bruegel, o Velho datado de 1565, referência
lendária do Renascimento flamengo. O retrato de três homens que regressam de
uma caçada, tendo a sua aldeia em fundo, vai ganhando inesperada vida
cinematográfica, com alguns pássaros a atravessar a paisagem, um cão a
deambular pela neve e o fumo que começa a sair das chaminés.
Há qualquer coisa de zoologia imaginária em tudo
isto, já que são vários os segmentos em que aparecem animais (pássaros, renas,
leões…) em atividades mais ou menos frenéticas, quase sempre acompanhados por
um fenómeno atmosférico - muita chuva, muita neve - que contamina a ação com
uma estranha alegria poética. Por vezes, os elementos humanos participam da
encenação no interior de um cenário de sugestivos contrastes figurativos:
observe-se o grupo de personagens que contempla a Torre Eiffel - não se mexem
(são mesmo figuras fotográficas), mas o monumento exibe muitas luzinhas
intermitentes, enquanto do lado do nosso olhar vão passando algumas pessoas,
uma delas, com uma guitarra, a cantar Les feuilles mortes, de Jacques Prévert.
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O
realizador Abbas Kiarostami (1940/2016) |
Filosofia e ironia
Retratista dos insondáveis mistérios das relações humanas - recordemos Onde fica a casa do meu amigo? (1987), título que o projetou
internacionalmente -, Kiarostami desenvolveu uma filmografia pontuada por este
gosto das “séries”, como quem experimenta várias hipóteses suscetíveis de
demonstrar um teorema.
Lembremos o caso exemplar de dois títulos também estreados em Cannes: Ten (2002),
antologia de uma dezena de diálogos no interior de um carro em movimento nas
ruas de Teerão, ou ainda 10 on Ten (2004),
rimando claramente com o anterior, agora em tom de reflexão sobre o próprio
trabalho narrativo. 24 Frames talvez
tenha sido pensado como uma variação filosófica, suavemente irónica, sobre a
célebre frase dita num filme de Jean-Luc Godard (O soldado das sombras,
1963), segundo a qual se “a fotografia é a verdade”, então o cinema é “a
verdade 24 vezes por segundo.”
Kiarostami é um artista que acredita que há uma verdade visceral em cada
imagem, verdade ligada a alguma forma de realismo. Paradoxalmente, isso não
exclui, antes potencia, a hipótese de, através dos elementos concretos desse
realismo, acedermos a experiências sensoriais de pura magia. Como num
“Divertimento” de Mozart, o que conta é a descoberta de uma melodia que não se
esgota numa colagem de harmonias, levando-nos a escutar o mundo de maneira
diferente - escutar e contemplar.
[Fonte: www.dn.pt]
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