domingo, 7 de julho de 2024

Joshua Cohen: «Netanyahu é uma pessoa horrível, numa situação impossível. Quando temos uma combinação de uma pessoa horrível e uma situação impossível, é difícil saber quem culpar.»

 

Em Lisboa para o Meet the Author da FLAD, o escritor americano Joshua Cohen, autor de A família Netanyahu, vencedor do Pulitzer, falou ao DN sobre ser judeu na América hoje. Recordou o dia do ataque do Hamas e explicou como o primeiro-ministro israelita procura ser digno do legado do pai, protagonista deste romance.

 


Escrito por Helena Tecedeiro


O seu A Família Netanyahu é sobre Benzion Netanyahu, o pai do atual primeiro-ministro de Israel , Benjamin Netanyahu. Porque é que decidiu fazer este “relato de um episódio menor e no fundo até insignificante da história de uma família muito famosa” como se lê no livro?

Não sei se isto tem a ver com decisões. Acho que escrevemos o livro que conseguimos escrever. Acredito que cada livro é um acidente e portanto eu tive muita, muita sorte por  me ter deparado com uma anedota muito amorfa e vaga que me foi contada pelo crítico literário americano Harold Bloom, que me pediu para o ajudar a escrever as suas memórias e, no processo de o ajudar, ou de começar a escrever essas memórias, que nunca foram publicadas porque ele morreu entretanto, mas no processo de trabalho com ele, ele contou-me uma espécie de anedota muito breve sobre o encontro com Benzion e toda a família Netanyahu em 1959-1960. Na verdade, era apenas uma anedota com uma frase, mas ficou comigo. E surgiu a ideia que começou a responder a algumas perguntas, ou a levar a algumas respostas para perguntas que eu tinha há muito tempo, como: porque é que a família Netanyahu estava nos Estados Unidos? O que é que eles estavam a fazer ali? O que os levou até lá?, etc., etc.

Este é um livro da covid, foi escrito durante a pandemia?
Sim, foi uma das coisas que fiz durante a covid. Não fiz pão, nem jardinei [risos]. Fui eu a única pessoa que não fez pão, e não foi por ser intolerante ao glúten...só não sou bom a fazer pão. Com a covid, o que era engraçado é que surgiu toda uma série de artigos sobre estar sozinho em casa. Falava-se disso, de como lidar com o excesso de tempo. Foi então que pensei: a covid tornou todas as pessoas em escritores. Eu passei a minha vida toda a lidar com isto. É preciso aprender a disciplinar-se. Para mim, a covid foi como qualquer outra altura, com a diferença de que morreram mais algumas pessoas. 

O seu livro é uma reflexão acerca da identidade judaica americana. E mostra um choque entre o muito americano judeu Ruben Blum e uma família Netanyahu muito judia israelita. Ser judeu hoje na América é totalmente diferente do que era nos Anos 60?
Bom, eu não estava por cá na altura [risos]. Tendo a pensar que, honestamente, este livro pode ser entendido como um encontro entre judeus americanos e judeus israelitas, sem dúvida. Mas a minha abordagem ao livro não foi essa. A minha abordagem foi que este livro fosse uma tentativa, da minha parte, de examinar a história das políticas identitárias. Se perguntar às pessoas que falam sobre política identitária, a maior parte irá dizer-lhe que esta começou com a geração de 1968. E, a certa altura, trata-se do que é a representação minoritária, entre aspas, na política, nos media, na academia, certo? O que, em algum momento da década de 1980, se tornou institucionalizado. De repente, surgiu um impulso institucional para a representação das “minorias” e assim por diante. E essa é, eu acho, a história que a maioria das pessoas lhe contará. A verdade é que quanto mais eu lia sobre Benzion Netanyahu, e quanto mais mergulhava na política de [Zeev] Jabotinsky e no início do sionismo, mais percebia que o maior triunfo da política de identidade ocorreu bem no início desta política, e foi o sionismo. O sionismo era uma política de identidade. E o sionismo foi o maior triunfo da política de identidade. Se se trata de uma minoria ganhar os seus direitos ao ponto de estabelecer o seu próprio Estado e a sua própria legitimidade, que outra minoria conseguiu isso? A resposta é que o sionismo foi a primeira. O que me interessou foi que, se dissesse a alguém de esquerda - que agora acredita na política de identidade - que o maior triunfo desta política foi o sionismo, eles iriam cuspir-lhe em cima. E, por isso, fiquei muito interessado no facto de a retórica que ouvimos da esquerda sobre a política de identidade ser exatamente a política de identidade que estava por detrás do sionismo. E, no entanto, estas duas coisas são agora vistas como estando em lados opostos do espetro político.

A tese de Benzion Netanyahu era sobre os judeus em Espanha e na Península Ibérica e as consequências da Inquisição. E a sua principal ideia é que os judeus estão condenados a sofrer, o que aconteceu, de facto, ao longo da História. Mas se olharmos para o que aconteceu depois do ataque de 7 de outubro do Hamas contra Israel, poucos parecem reconhecer o sofrimento do lado israelita. Hoje o antissemitismo está mais vivo do que nunca, sobretudo na esquerda americana? Esta reação surpreendeu-o?
Não, não me surpreendeu. É engraçada porque Philip Roth, cujo espírito assombra parte deste livro, costumava dizer que não importa o tamanho da população dos Estados Unidos, há sempre duas mil pessoas que leem romances. Gosto desta ideia. Aconteça o que acontecer - haver sempre duas mil pessoas que leem romances. E de certa forma acho que o mesmo se passa com o antissemitismo. Está sempre presente. Vai sempre existir, nunca vai desaparecer. Simplesmente, algumas vezes torna-se mais apropriado politicamente, ou torna-se mais permissivo, expressar essas emoções. É o que chamamos de normalização, certo? A ideia de que algo de repente se torna normal ou, de repente, se torna válido ou aceitável expressar essas opiniões. Portanto não me surpreendeu. O que me surpreendeu, e não devia ter surpreendido, mas o que é notável é que os judeus - e um pouco o mundo árabe também - sempre foram usados pela Europa como um símbolo ou um proxy para problemas não judeus. Por isso, a esquerda americana vê o conflito israelo-palestiniano através das lentes das relações raciais e dos direitos cívicos nos Estados Unidos, através da história americana da escravatura. Portanto, nas suas cabeças, os israelitas são os brancos. Os palestinianos são os negros ou castanhos. É isto corresponde completamente ao seu conceito de relações raciais na América. Na Europa, geralmente olham para o conflito israelo-palestiniano através das lentes do fim do império e do colonialismo. É a ideia de um país ir para o estrangeiro, para um país mais pobre, mais escuro, de se instalar, de o colonizar, de violar, de pilhar e roubar tudo o que este tem, e trazer tudo para a sua capital rica. Nenhum destes dois quadros tem nada a ver com a realidade do conflito. Portanto, o que é surpreendente para mim é este privilégio recorrente da elite democrática ocidental de ver este conflito estrangeiro em termos locais, como uma forma de evitar lidar com as suas próprias questões locais. Como, por exemplo, a imigração. 

As pessoas têm tendência a ver as coisas em termos locais e muito a preto e branco. Sobretudo, em relação ao conflito israelo-palestiniano, ou estão de um lado ou do outro e não parecem tentar compreender o outro lado... 
Sim. Mas isso não se aplica a alguns israelita e alguns palestinianos que eu conheço e que têm de viver com esta realidade. Grande parte das pessoas esquece que 25% da população de Israel é árabe. Quando falam do massacre do 7 de outubro, esquecem-se de que muitos árabes e muitos beduínos foram mortos, foram massacrados. Incluindo uma mulher grávida que foi morta com o seu bebé.

Esse dia do ataque do Hamas tem sido apelidado do 11 de setembro de Israel e imagino que, um pouco como no 11 de setembro, todos os judeus do mundo se lembrem onde estavam nesse dia. Onde é que o Joshua estava? Como é que soube da notícia e qual foi a sua reação?
Onde é que eu estava? Na verdade, é uma ótima história. A minha mulher…

Que é israelita, certo?
Sim, nós vivemos metade do ano em Telavive e metade do ano nos Estados Unidos. Portanto, a minha mulher é jornalista do diário Haaretz. Uma jornalista muito, muito séria. E uma coisa que eu acho engraçada na minha mulher é que ela tem zero interesse em filmes. Nenhum. Não se lembra dos filmes que viu, não tem interesse em ir ao cinema. E eu estou sempre a tentar convencê-la a ver um filme comigo. Mas ela diz sempre que não. E nesse dia eu tinha acabado de lhe dizer qualquer coisa. Tinha feito uma referência a qualquer coisa e ela diz-me que conhece aquela fala, que é de um filme, mas não sabe de qual. Eu digo que é d’O Padrinho. E então percebo que a minha mulher nunca viu O Padrinho! Andámos a falar disso durante vários dias e na sexta-feira digo, que se lixe, vamos ver O Padrinho. Os três filmes. O que dá umas boas nove horas. E o terceiro é péssimo! Mas passámos a noite a ver os filmes, até ao outro dia de manhã. Estamos ali à frente da televisão e é a cena em que a Sofia Coppola é morta a tiro. Lembra-se? Nos degraus da ópera. E a minha mulher está a chorar. Porque é a filha do realizador. Como é que ele mata a própria filha no fim do filme? Eu digo-lhe que o filme é um bocado estúpido. E quando vou olhar para o telemóvel, vejo as notícias de Israel. E passamos todos a ter motivos para chorar.

Estavam nos Estados Unidos nesse momento?
Estávamos nos Estados Unidos. Mas na semana seguinte já estávamos em Israel. E a minha mulher teve de voltar ao trabalho.

Voltando ao seu livro, um Benjamin Netanyahu criança tem uma pequena participação…
Sim, ele aparece a dar palmadas no pénis do irmão…

O que é uma cena memorável, de facto! Do que se sabe, até que ponto é que Benjamin Netanyahu se inspirou na visão do mundo do pai? No revisionismo sionista, na sua tese de que o conflito está na essência dos árabes?
Ele herdou, sem dúvida, a ideologia do pai, a sua filosofia, que era essencialmente uma visão jabotinskiana. Mas mais do que isso, acho que ele está empenhado em vingar o pai. O pai de Netanyahu sentiu frustração e raiva por ter sido excluído de participar nos primórdios da formação do Estado de Israel, como aconteceu com todos os revisionistas. Foram excluídos de participar nos primeiros anos da existência de Israel. Penso que, em muitos aspetos, Netanyahu vê a sua carreira não apenas como uma vingança pelo esquecimento a que o pai foi votado, mas também como uma forma de provar ao pai que é digno do seu legado, sobretudo depois da morte do irmão mais velho, Yoni, em 1976, em Entebbe. Ele sente que tem de estar à altura.

Durante muito tempo Benjamin Netanyahu também acreditou ser o único líder em Israel capaz de garantir a segurança do país. Mas agora tem sido criticado pelas falhas no 7 de outubro. Continuar a guerra em Gaza e talvez mesmo abrir outra frente contra o Hezbollah no Líbano, é uma forma de se manter no poder?
Neste momento não consigo imaginar uma frente no Líbano. É completamente assustador. A quantidade de armas de longo alcance, de mísseis, que o Hezbollah tem. Além da situação nuclear com o Irão. Não tem nada a ver com Gaza, que é um conflito restrito. Uma guerra com o Hezbollah é a guerra aberta com o Irão.

Mas acha que Netanyahu tem interesse em alimentar estes conflitos?
Acho que é fácil dizer isso, que ele prossegue com a guerra para se manter no poder e fora da cadeia, claro. Mas ele também está a manter a guerra para evitar ter de reconstruir Gaza, que é um projeto económico impressionante tendo em conta a quantidade de danos que o Governo israelita causou. Quer dizer, ele tem todos os motivos para continuar a guerra, desde o seu desejo de ficar fora da prisão até ao seu desejo de não levar o país à falência, reconstruindo infraestruturas que o irão atacar novamente. Por isso, não sei. Além disso, como é que se põe fim à guerra sem os reféns terem sido libertados? Ou seja, eu acho que Netanyahu é uma pessoa horrível, mas também está numa situação impossível. E quando temos uma combinação de uma pessoa horrível e uma situação impossível, é difícil saber quem culpar.

O seu livro passa-se num campus universitário. Nos últimos meses vimos os campi universitários americanos tornarem-se palcos de inúmeros protestos contra Israel e pró-Palestina. A causa palestiniana ganha cada vez mais adeptos na esquerda e entre os jovens nos Estados Unidos?
Claro. Mais uma vez acho que temos de encarar isto no contexto das relações raciais nos Estados Unidos. É significativo que se esteja do lado da minoria nos Estados Unidos. Acho que tem muito pouco a ver com a situação global real. Também tem a ver com o facto de haver muito mais árabes do que judeus nos Estados Unidos. Como na Europa também há muitos mais árabes do que judeus. Trata-se basicamente de apaziguar uma população local pela qual os europeus - ou americanos - brancos se sentem ameaçados.

Os Estados Unidos são o maior aliado de Israel e ao longo dos tempos habituámo-nos a ver esse apoio pouco ou nada variar quer o presidente fosse democrata quer fosse republicano. Mas com tanta contestação, a questão israelo-palestiniana e o apoio a Israel podem custar votos a Biden em novembro?
Não, Biden vai perder a eleição por conta própria. Dizer o contrário seria pôr as culpas nos judeus, que é exatamente o que as pessoas estão a tentar fazer - dizer que Biden perdeu por causa dos judeus, por causa de Israel. É assim que o antissemitismo funciona. Oiça, do meu ponto de vista, a América não é o maior aliado de Israel por adorar os judeus ou por o lóbi judaico ser muito forte na América. A América é o maior aliado de Israel porque não há, na região, qualquer outro país aberto aos interesses americanos. A América ainda é uma aliada bastante próxima da Arábia Saudita - é porque gostamos da forma como tratam as mulheres ou os jornalistas? É porque a Arábia Saudita financiou os terroristas que lançaram os aviões contra o World Trade Center? Não. Somos aliados porque os sauditas alinham com os interesses americanos. São os interesses americanos em primeiro lugar. Sempre. E quando a América se cansa, vai-se embora. Como fez no Afeganistão. Diz tchauzinho mulheres afegãs que enviámos para a universidade, boa sorte com os talibãs!

Novos projetos?
Tantos! Tenho dois novos romances. E são bons [risos].

[Fonte: www.dn.pt]

Sem comentários:

Enviar um comentário