segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Em Buenos Aires também se canta o fado

Na cidade do tango, os "fadistas portenhos" enchem salas e organizam festivais. Karina Beorlegui, os Fadeiros ou os AlmaLusa são alguns dos fadistas nascidos e criados na capital argentina mas com muito Portugal na alma.

                                Dois dos elementos dos AlmaLusa têm ascedência portuguesa.

Escrito por João Almeida Moreira 

Que género musical, ao mesmo tempo nostálgico, urbano, boémio, melancólico, marítimo, noturno e romântico, canta como nenhum outro paixões e traições, amores e desamores, galhardias e velhacarias, cinzas e lume, dor e pecado? Se respondeu fado, acertou. Se respondeu tango, também. Quem entendeu que a pergunta tem duas respostas foram Karina Beorlegui, os Fadeiros ou os AlmaLusa, fadistas nascidos e criados em Buenos Aires, a casa do tango.

"A relação entre fado e tango é algo que transcende a história, Portugal e Argentina são como primos afastados, mas muito próximos", diz ao DN Karina Beorlegui, cantora e atriz nomeada em 2016 Personalidade Destacada da Cultura na capital argentina. É ela quem organiza, desde 2012, de dois em dois anos, o "Festival Porteño de Tango y Fado".

                           "A relação entre fado e tango é algo que transcende a história, Portugal e Argentina são como primos afastados, mas muito próximos", garante Karina Beorlegui.

Entre os participantes, além da própria, o Trío Fado, os AlmaLusa e os Fadeiros, liderados por Ana Kusmuk, com nome de origem ucraniana, sangue portenho nas veias mas muita alma portuguesa. "Entre tango e fado há uma ligação melancólica e romântica, nos Fadeiros, quando temos de reinterpretar músicas de Portugal, sentimos logo um vínculo espontâneo, penso que deriva desta questão de os géneros virem de cidades portuárias".

"Já fizemos quatro discos de fado disponíveis no Spotify, fazemos muitos concertos em Buenos Aires e em outros lugares, estamos muito felizes por evocar Portugal na Argentina e mostrar esta música maravilhosa aos argentinos", completa.

Mas como é que Ana Kusmuk ou Karina Beorlegui, nascidas a 10 mil quilómetros de distância de Alfama, descobriram o fado?

"Em 1999, um amigo ofereceu-me um disco da Mísia chamado Paixões Diagonais e eu perguntei-me "por Deus, o que é isto?", que música tão nostálgica e tão linda, e entendi "bom, isto é que é o fado", porque antes, muita gente aqui associava fado a Cesária Évora, que na verdade cantava mornas", conta Karina.

"A partir de então ouvi muito a Amália, que morreu nesse ano, fiquei maravilhada e estudei-a ao ponto de saber que, em pequena, ela cantava tangos, e como, entretanto, Gardel cantou um fado, Caprichosa, composto por um seu guitarrista, motivei-me a cantá-lo e depois a organizar o ciclo "El Fado e Tango Club", por 12 anos, antes do "Festival Porteño de Fado y Tango", já na sexta edição". Depois de quatro discos a solo, lançou agora mais um: Encuentro Amália/Gardel.

Ana Kusmuk cita Dulce Pontes, como porta de entrada no fado, além da amiga Mafalda Arnauth. "Esta aventura com o fado começou há mais de 15 anos, quando escutei Dulce Pontes, fiquei fascinada com a música que, apesar de me ser desconhecida, me era tão próxima, mais tarde conheci Mafalda Arnauth, que tive a felicidade de hospedar em casa após um concerto em Buenos Aires".

                           Ana Kusmuk, líder dos Fadeiros, cita Dulce Pontes, como porta de entrada no fado.

Entretanto, a relação de Dulio Moreno, fadista dos AlmaLusa, com o fado é diferente da de Karina e da de Ana - aliás, basta ouvi-lo para perceber essa diferença. "Tango e fado podem ter origens diferentes mas são muito parecidos por serem de cidades portuárias, cantarem histórias de saudade, desamores, paixões...", afirma, num português de fazer corar o Camões.

"Sim", ri-se, "o nosso grupo, tem cinco membros dos quais dois, eu, que sou comunicador de profissão, e a Laura Rojas, que é cantora e atriz profissional, têm ascendência portuguesa, eu do Sabugal, Beira Alta, e também da Beira Baixa, a Laura, do Algarve".

"Ela é neta de portugueses, eu apenas bisneto, mas a minha avó, já portenha, conservou muitas raízes da música e da gastronomia portuguesas, e, por isso, estive envolvido com instituições portuguesas em Buenos Aires, onde conheci a Laura, e aprendi a falar o idioma".

"Um dia, numa reunião de lusodescendentes em Lisboa, cantei um tango, porque todos tínhamos de cantar algo do nosso país, a partir daí comecei a cantar tangos, depois, passei para a música folclórica portuguesa e, só então, para o fado, quando a Laura me desafiou a formar um grupo".

Agora os AlmaLusa têm concertos "mais ou menos uma vez por mês" numa sala onde reproduzem o formato de uma casa de fados, sem instalações sonoras. "E os portenhos adoram e são muito conhecedores", garante.

Os fadistas são, hoje, tão bem recebidos em Buenos Aires como os "tangueros" em Lisboa. "Quando visitei Lisboa pela primeira vez em 2004 fui para cantar, tango é claro, e, de repente, entrava numa casa de fado e tratavam-me como uma estrela, "Karina, cantas tango, entra, entra", hoje os fadistas portugueses que aqui chegam passam pelo mesmo, há devoção por eles".

Além das semelhanças, sublinhadas no primeiro parágrafo, Karina vê outras: "fado e tango renovam-se sempre, com novos intérpretes, com novos autores, com novas letras e sobrevivem a géneros, como o rock, e tudo o mais que vem de fora".

"E são ritmos declarados Património Intangível da Humanidade e identidades culturais em cidades portuárias, como Buenos Aires e Lisboa, unidas pelo Rio da Prata e o Tejo a cidades vizinhas, como Montevideu ou Coimbra, que se souberam projetar no mundo".

 

[Fonte: www.dn.pt]

Sem comentários:

Enviar um comentário