Ananda Marques, mestra em Ciência Política pela UFPI
A semana seguinte é sempre pior que a atual há algum tempo no Brasil, o sem limites do sofrimento encontra cada vez mais espaço para corroer aqueles que sobreviveram aos últimos anos. E para as mulheres brasileiras, para as mulheres negras, para as mulheres pobres, para as mulheres mães, para as mulheres com deficiência, lgbt, indígenas e ativistas, para aquelas que ocupam esse lugar de coragem e risco tem sido ainda mais dolorido. Num intervalo de poucos dias, três vídeos circularam tanto na imprensa como nas redes sociais escancarando a insegurança na qual vivemos; não há garantia alguma de nossas vidas e direitos no Brasil em 2022.
Na cena que chocou o país, uma juíza tortura psicologicamente uma criança de 11 anos vítima de abuso sexual, cuja mãe buscou o sistema de saúde para acesso à interrupção da gravidez, como é previsto no Código Penal desde 1940. Depois da negativa do hospital, procurou o sistema de justiça, o que elas encontraram foi mais violência. Dois dias depois da matéria que denunciou o ocorrido, a juíza foi removida do caso porque, coincidentemente, estava em processo de promoção. O caso lembra a história de Cícera Fernandes de Oliveira, que em 1980 buscou o mesmo direito para a filha de 12 anos, estuprada pelo padrasto e que teve de levar a gestação a termo por falha do Estado brasileiro. Quarenta anos depois, retrocedemos.
Antes mesmo de que as notícias sobre a juíza de Santa Catarina esfriassem, outro vídeo nos horrorizou: a procuradora do município de Registro, no interior de São Paulo, foi espancada pelo colega de trabalho e toda a agressão, filmada. Ao desferir golpes, chutes e tapas contra a mulher, ele a xingava com termos machistas. A imagem da procuradora com o rosto ensanguentado estampou jornais. Três dias depois, o agressor foi levado para um hospital psiquiátrico.
Como o país não nos permite descansar entre uma tragédia e outra, logo depois ganhou repercussão um vídeo do RJTV no qual uma senhora acompanhada de seu neto chora ao ser entrevistada, conta à repórter – também emocionada – que no domingo anterior sua família não tinha absolutamente nada para comer, perdeu o marido e uma filha no último ano e estava na fila do projeto municipal que distribui refeições porque passava fome. Pergunto-me como ela perdeu o marido e a filha, se foi para a Covid. No Brasil de quem sobreviveu à pandemia, o prêmio é a fome? Mais de 33 milhões de brasileiros estão na mesma situação e mais da metade da população vive algum nível de insegurança alimentar em 2022.
O que essas três cenas têm em comum? Abuso sexual e revitimização são violências. Agressão física e psicológica são violências. Fome e violação de direitos básicos, como alimentação, são violências. As três histórias que ganharam visibilidade essa semana têm como alvo mulheres e crianças, vítimas não apenas de seus agressores diretos, mas também, dos sistemas de saúde, justiça e assistência social que falharam com elas, com todas nós. Vítimas de um modo de governar que promove a morte.
Uma criança abusada não ter acesso a um atendimento humanizado e a um direito previsto há décadas não é uma situação excepcional. A juíza, apesar dos requintes de crueldade da audiência, não é a única. Há pelo menos uma década conservadores, fundamentalistas e a extrema-direita têm travado uma cruzada ideológica que se deslocou da sociedade civil para as instituições. Nesse processo, promoveram pânico moral, ataque sistemático aos direitos humanos e, uma vez com acesso ao poder, implementaram um processo de desmonte de políticas públicas que garantiam o mínimo. Apenas para ilustrar, em maio deste ano o Ministério da Saúde publicou a nova caderneta da gestante, estimulando práticas que são notadamente reconhecidas como violência obstétrica. Os retrocessos na política de saúde, criada em 1984 como Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher, são significativos, e a cada caso de falha na assistência à saúde, o quadro se agrava.
Da mesma forma, o governo de extrema-direita que hoje está no poder vem desmontando as políticas de direitos das mulheres e minorias, não apenas através da criação de programas ineficientes e encerrando ações historicamente reconhecidas como efetivas, mas também, devido à paralisia na gestão. Levantamento da revista Gênero e Número revela que apenas 56,5% dos recursos disponíveis para as mulheres foram efetivamente gastos até novembro passado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, apesar do aumento de verbas destinadas à pasta.
Política pública não é apenas o que o Estado faz, é também o que deixa de fazer. A cultura de violência é reforçada quando não há políticas públicas eficientes de promoção da paz e em defesa das mulheres e crianças. O agressor da procuradora de Registro é o responsável direto pela violência, no entanto, a ausência de políticas de prevenção à violência contra mulheres e o incentivo ao machismo e à misoginia promovido pelo presidente e seus apoiadores têm peso no cenário de insegurança que vivemos.
E por fim, o aumento da pobreza e da fome no Brasil, que violenta de forma ainda mais grave mulheres e crianças, é responsabilidade também do governo federal. O fim do Bolsa Família, programa de combate à pobreza internacionalmente reconhecido e de eficiência cientificamente comprovada, com sua substituição pelo Auxílio Brasil – programa ainda mais focalizado, esteve acompanhado do crescimento no número de pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade. A alimentação é um direito humano, é a garantia básica de dignidade, e é sob o atual governo que metade do povo brasileiro está vivendo sem esse direito.
Diante das notícias sinto o que não consigo nomear: o insuportável de ser mulher no Brasil. Não há garantia alguma de nossa integridade como seres humanos, não há segurança para as mulheres e seus filhos. Silvia Federici, historiadora italiana, argumenta que há “um estado de guerra permanente contra as mulheres” sustentado pela desvalorização da vida e trabalho, impulsionado pelo processo de globalização. A misoginia, o ódio às mulheres, atravessa as relações sociais e se manifesta também nas instituições políticas. Rita Segato, antropóloga argentina, aponta que vivemos “novas formas de guerra” nos modos atuais de violência que têm como alvo os corpos das mulheres e o que persiste é a dimensão colonial, um regime de apropriação que radicaliza a forma colonial da violência.
O Brasil que é insuportável para mulheres hoje descende do projeto de colonização através da apropriação, escravização, extermínio, violência, tortura e estupro. Projeto atualizado na ditadura e que tem diversos braços nos diferentes territórios, desde o encarceramento e genocídio da população negra, passando pela exploração de terras indígenas, assassinatos e violações dos povos originários, tradicionais e ativistas ambientais, até o agravamento da violência contra mulheres. Não creio que toda essa cadeia de violações seja ingênua ou casual, me parece um projeto de sociedade excludente que atualmente ganhou fôlego para ser executado, e consequentemente, nos executar.
Por mais que seja óbvio enxergar apenas a primeira camada de responsabilidade pela violência, ou seja, daquele que a pratica diretamente, é preciso escavar as dimensões invisíveis que a História revela. O século XXI parece não ter chegado para nós, vivemos num limbo temporal perverso, uma espécie de máquina do tempo que nos coloca diante das mesmas violências de nossas antepassadas. O temor me sobressalta, o que virá depois? Nos proibir de ir à escola, de possuir algo em nosso nome, condenar-nos à fogueira? Margaret Atwood, que escreveu “O Conto da Aia” e é conhecida por suas distopias a partir de fatos históricos, precisa ser uma obra de ficção e não um um prenúncio aterrorizante do que o Brasil vai se tornar.
[Fonte: www.estadao.com.br]
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