Escrito por Pedro Correia
Annie Ernaux - escritora francesa que há 38 anos só publica «obras autossociobiográficas», cheia de pergaminhos politicamente correctos - foi ontem proclamada vencedora do Nobel 2022. Um dos atributos que lhe reconhecem é ter «coragem». Embora, no mundo contemporâneo, pareça demasiado fácil alguém que se proclama da esquerda radical criticar a burguesa e tolerante França por ser «um país de direita», como ela desabafou em recente entrevista ao El País.
Imagino o que aconteceria se fosse iraniana em vez de ser francesa e ousasse sair à rua com o véu mal posto...
A propósito: Salman Rushdie, como era de prever, voltou a ser esquecido. O júri de Estocolmo quer continuar a dormir sem estar sujeito a uma fátua proclamada pelo totalitarismo iraniano.
Como há 17 dias escrevi aqui, «é intolerável que Rushdie, perseguido há 33 anos pelo mais repugnante extremismo que usa a religião como pretexto para impor a lei do silêncio, seja igualmente vítima da atmosfera de medo que vigora em Estocolmo».
Parecia que adivinhava: fica sempre muito bem proclamar a coragem, mas outros que a pratiquem lá bem longe.
Se há sintoma de irreversível declínio da Academia Nobel, este é o mais evidente. Não admira que nunca tenha premiado Hannah Arendt, Borges, Orwell, Yourcenar, Nabokov, Javier Marías ou Cabrera Infante.
Declínio também da língua de Molière e de Malraux: apesar de a vencedora deste ano ser francesa, o presidente do júri anunciou a notícia ao mundo, na capital sueca, falando em inglês. O idioma da «indústria cultural», com inequívoca caução do império americano, em que a literatura se vai transformando.
Mesmo aquela que se proclama «transgressora». Ou sobretudo esta: porque só «transgride» quando não incomoda nem belisca ninguém.
[Fonte: delitodeopiniao.blogs.sapo.pt]
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