Dizem que o sonho de toda classe média brasileira é ser parte da Europa. Mas há ao menos uma exceção: a Holanda. A Holanda é o pesadelo da classe média brasileira e da família de bem.
Escrito por Paulo Paganini
Escrito por Paulo Paganini
Imaginem a reação desta classe ao descobrir que toda família recebe uma bolsa por filho para que tenham acesso à cultura e à arte. “Que absurdo!”, diriam. “Bolsa para sustentar vagabundo? Coisa de petista que mama na Lei Rouanet e agora quer dar acesso para pobre?”. “Porque o filho de uma amiga conhece um rapaz que tem um tio que viu um cara bebendo num bar. Certeza que era com essa bolsa-esmola!”
Sobre a educação de qualidade e universal, a classe média, aquela que mora nos Jardins, iria amar ver seus filhos estudando ao lado de filhos e filhas de pessoas que trabalham com faxina, construção, caixa de supermercado. “Como este governo ousa misturar minha família com serviçais?”
E a prostituição? O governo holandês regulamentou a prostituição. Se fosse no Brasil, isso causaria pânico, desespero, perda de cabelo, urticária e siricutico nas pessoas de bem. “O que vou dizer ao meu filho quando ele vir uma moça numa vitrine oferecendo serviços sexuais em plena luz do dia?” Embora reconheço que existem diversos problemas relacionados a esta pauta e que valeriam para um outro texto, certamente a família “cristã” tradicional brasileira iria à loucura numa eventual regulamentação desta profissão.
Maconha também é regulamentada na Holanda, ao passo que pena por crimes de menor grau é branda. E eis que surgem as pessoas de bem para garantir que bandido bom é bandido morto e que “se fosse na ditabranda, isso jamais iria acontecer”. Então, lutando por dias melhores, a linda classe média demandaria a mudança certa destes pontos. “Lugar de bandido é na cadeia!”, diriam aos berros enquanto chamam a bandeira do Japão de bandeira comunista. “O favelado tem que pagar com pena, dura se for pego com drogas”.
Em caso de um membro da família da classe média ser pego, eis a pena alternativa: “Ah, era apenas um cigarro. E o Afonsinho ainda é só um menino”, no auge dos seus 25 anos. “Já chamamos o advogado da família para lidar com isso. E o Afonsinho já pagou a pena dele, pois cortamos a mesada dele pela metade e cortamos também a viagem deste final de semana.” Agora imaginem esta classe média inserida num lugar onde existe regulamentações e mais regulamentações que ampliam direitos e estendem as situações de igualdade…
Ok. Até certo ponto a classe média tradicional aceitaria, ou ao menos engoliria, tais regulamentações. Mas tem uma que não dá. “O que?? Ciclovia??”. Se transposta do Brasil para a Holanda, a classe média iria à loucura ao descobrir que o carro é o último na lista de prioridades das leis de trânsito locais. Num lugar onde bicicletas, pedestres e transporte público têm prioridade em detrimento ao carro, isso seria veementemente repudiado pela família de bem. “A gente se esforça pra comprar um carro e vem esse governo comunista dar preferência para bicicleta?”
No fim das contas, a classe média brasileira e todo o leque conservador da sociedade aceitaria alguns pontos desta lista, uma vez que os consome. Aceitariam, com muito custo, uma educação menos elitista e de qualidade. Aceitariam, numa situação muito hipotética, a regulamentação da prostituição, após romperem com sua hipocrisia e assumir que os barões médios e os pequenos burgueses consomem este tipo de serviço. Aceitaria até mesmo a maconha circulando de forma regulamentada, e assim o Afonsinho poderia fumar tranquilamente, embora isso seja uma afronta aos bons costumes.
Mas ciclovia? Essa a classe média negaria irredutivelmente. “Não vou trocar o conforto do meu SUV por uma bicicleta. E sou livre, tenho o direito de andar com meu SUV sem ninguém me incomodar! Vão colocar ciclovia na puta que pariu, mas não aqui!! Prioridade para outros meios?? De jeito nenhum! Eles que comprem um carro. E que seja um carro decente, senão vai deixar a cidade ainda mais feia com aqueles carros baianos de pobre!”
*Não trago, e não busco trazer aqui, o debate sobre a mercantilização destas pautas e a dominação de tais mercados por grandes grupos. Busco apenas ilustrar de forma rasa o pensamento médio brasileiro, sem intuito algum de aprofundar estes pontos neste texto.
[Fonte: www.onovelo.com.br]
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