Escrito por Sérgio Rodrigues
"O estilo é o próprio homem". A máxima do
naturalista francês Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, homem do século 18,
é um caso de criatura que ficou maior que o criador. Quase sempre é citada sem
crédito para quem a cunhou. Virou lugar-comum.
Se Buffon tem culpa nisso, talvez seja apenas a de ser fiel ao que
formulou. Seus aforismos enxutos de cientista avesso ao beletrismo (outro:
"A glória só é um bem quando se é digno dela") ilustram a ideia de
que o estilo é simplesmente a impressão digital de quem escreve, não um
conjunto de penduricalhos com os quais se enfeita o texto.
A menos, claro, que o autor tenha uma alma ataviada de penduricalhos, caso
em que um estilo cheio de pirotecnia e artifício, em vez de falsificação, será
um reflexo do vazio de suas ideias. A máxima de Buffon dá um jeito de estar
certa até quando é desmentida.
O agregado José Dias, personagem de "Dom Casmurro", está no
último caso. Encarnação de um tipo comum no Brasil escravocrata, o homem livre
sem vintém que depende do favor de uma família de posses, Dias disfarça sua
condição patética dando-se ares de importância como conselheiro e abusando de
um truque gramatical: o superlativo.
Mais precisamente, o superlativo absoluto sintético. E tome
"amaríssimo", "perfeitíssimo", "lindíssimo". Nas
palavras –crudelíssimas– de Machado de Assis, "José Dias amava os
superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo,
servia a prolongar as frases".
Virar uma caricatura talvez não seja o maior perigo para quem abraça um
capítulo de gramática com tanta paixão que nele, mais que um estilo, funda um
modo de ser –essas coisas que para Buffon são uma só. O estilo é subproduto da
pessoa, mas talvez não seja descabido imaginar que a pessoa, em certos casos,
possa ser um subproduto do estilo.
O caso de Michel Temer parece confirmar a hipótese. Em seu discurso de
posse, há pouco mais de um ano, uma mesóclise roubou a cena: "Quando menos
fosse, sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação
jurídica."
Poucos dias depois, em outro discurso, o sucessor de Dilma Rousseff
reforçou o que já era reconhecido como marca de seu estilo: "Procurarei
não errar, mas, se o fizer, consertá-lo-ei".
Mesóclise é a colocação do pronome oblíquo átono no meio da palavra –tecnicamente,
entre o radical e a desinência do verbo. Só ocorre em formas verbais do futuro
("consertá-lo-ei") e do futuro do pretérito ("sê-lo-ia").
Trata-se de uma joia antiquada da nossa gramática. Vale reconhecer sua
beleza, mas não ignorar que ela praticamente caiu em desuso no Brasil e que
mesmo os portugueses a reservam a certos tipos formais de escrita.
Soar como um político da República Velha parecia ser a intenção de Temer,
por temperamento ou para acentuar o contraste com a desarticulação verbal de
Dilma. Com quatro meses de governo, voltava atrás: "Não uso mais
mesóclise". Era tarde para evitar a caricatura.
Numa vingança do estilo contra o homem, Temer agora corre o risco de
mesoclisar-se, virando um breve pronome intercalado entre o radical (Dilma) e a
desinência (incerta) do verbo "governar".
Queria ser o presidente da "ponte para o futuro". Sê-lo-á?
Parece improvável. Sê-lo-ia, não fosse Jo-es-ley.
[Fonte: www.folha.com.br]
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