Escrito por Sérgio Rodrigues
Fatura Exposta. O nome da operação deflagrada na terça
(11) pela força-tarefa da Lava Jato no Rio, com a prisão do ex-secretário de Saúde de Sérgio Cabral, é um achado que faz pensar:
por que será que o trocadilho goza de reputação tão abominável?
A fama de "mais baixa forma de humor" é um lugar-comum tão
arraigado que os adeptos da seita formam uma raça meio cabreira. Trocadilhistas
não abrem mão de seu prazer, mas o cercam de pedidos de desculpa: "Com
perdão do trocadilho..."
A operação Fatura Exposta prova que um trocadilho, quando brilha, é ouro.
O que já seria bom como nome de qualquer ação contra corruptos fica excelente
quando se sabe que, segundo a Polícia Federal, grande parte do desvio de R$ 300
milhões ocorreu em licitações do Instituto Nacional de Traumatologia e
Ortopedia (Into).
Numa entrevista de 2008, em seu estúdio panorâmico de Ipanema, perguntei
ao maior humorista brasileiro da história o que achava do trocadilho. Ouvi uma
defesa eloquente: "Dizem que é a mais baixa forma de humor, mas se você
tirar o trocadilho de Shakespeare, ele desaparece", disse Millôr
Fernandes.
Mestre do ofício e tradutor do dramaturgo inglês, o homem sabia do que
falava. Arrematou o argumento recordando um trocadilho que, nascido numa esquecida
batalha intelectual do século 20, é tão bom que pode ser apreciado por leitores
de hoje, mesmo que falte intimidade com os escritores em questão.
"O Agripino Grieco escreveu: 'Menotti del Picchia, fecha a barguilha
do teu nome!'" ("barguilha" é só uma variante de
"braguilha", nada a ver com trocadilho). Millôr riu muito da tirada
que sabia de cor: "Isso é ótimo! Não dá para dizer de outra forma".
Aí está a essência do trocadilho. "Não dá para dizer de outra
forma" porque, mesmo quando é óbvio e grosseiro, ele se funda num
equilíbrio fortuito e delicado entre som e sentido, que qualquer desvio mínimo
faria desmoronar.
O filólogo e tradutor Paulo Rónai escreveu em 1950 um artigo definitivo
sobre o tema, chamado "Defesa e Ilustração do Trocadilho" (incluído
em seu livro "Como Aprendi o Português e Outras Aventuras").
Diz o erudito que o trocadilho, "como a rima, inspira-se em
semelhanças formais para apontar ao espírito associações novas",
aproximando-se assim da poesia: "A própria poesia (...) não é, sob certo
aspecto, um complexo e requintado jogo de palavras?"
Pode parecer exagero, mas os argumentos são convincentes. Observando que
esse tipo de joguinho de palavras costuma ser intraduzível, Rónai o vê
"ligado à substância íntima de cada língua".
Num sobrevoo histórico, demonstra que o trocadilho já teve nobreza. Há
fartura de elegantes exemplos bíblicos ("E também eu te digo que tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja") e renascentistas.
De onde vem então a pecha de "mais baixa forma de humor"?
Provavelmente do exagero frívolo no qual, como viciados em drogas pesadas,
certos trocadilhistas acabam por incorrer.
Rónai cita como principal vilão o marquês de Bièvre, escritor que, às vésperas
da Revolução Francesa, batizava seus personagens com nomes como "Contesse
Tation" ("Condessa Tation" e também "contestation").
"Marquês está dizendo esse cara!?", diria um discípulo do
marquês. Com perdão do trocadilho.
[Fonte: www.folha.com.br]
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