sábado, 29 de abril de 2017

"Assumimos todas as consequências de fazer um referendo na Catalunha"

Entrevista ao conselheiro de Negócios Estrangeiros, Relações Internacionais e Transparência do Governo da Catalunha, Raül Romeva.






Escrito por Susana Salvador

O conselheiro de Negócios Estrangeiros, Relações Institucionais e Transparência do Governo da Catalunha, Raül Romeva, fez um balanço ao DN do projeto independentista catalão. Em Lisboa para marcar o Dia de Sant Jordi e para a apresentação da reedição do livro Dois Povos Ibéricos: Portugal e Catalunha, escrito por Fèlix Cucurull há 50 anos, reiterou a vontade do governo de fazer o referendo, com ou sem o apoio do governo de Madrid.

Há 50 anos era editado pela primeira vez "Dois Povos Ibéricos: Portugal e Catalunha'. Existe uma grande ligação entre os dois povos?

Sem dúvida. Para mim há dois aspetos que são chave e que se interpretam do livro de Cucurull. Um é o iberismo, o facto de se fazer parte de uma realidade cultural, até antropológica, que é Península Ibérica. Uma realidade diversa e plural, mas com muitas raízes comuns. Catalunha e Portugal são duas realidades, entre outras, deste iberismo. O segundo aspeto é que, para mim, são duas culturas muito culturais, no sentido estrito do termo, que se desenvolveram muito desde o ponto de vista linguístico, da produção cultural, em termos de música, literatura, uma produção muito própria. São também duas línguas que, na Península Ibérica, têm uma dimensão e tamanho semelhante. E duas culturas que se entendem. Há uma relação de uma natural amizade entre os povos português e catalão, muito natural, uma relação que do ponto de vista até pessoal ocorre com muita naturalidade. E viemos aqui precisamente pelo facto de o 23 de abril ser muito importante na Catalunha [Dia de San Jordi] e o 25 ser muito importante em Portugal.

São povos culturalmente muito próximos. Mas e politicamente? Como tem sido a reação de Portugal ao que procura a Catalunha?

Tem sido correta, no sentido que houve uma atitude de expectativa e de respeito. Em nenhum momento notámos, e isto é bom, qualquer hostilidade. Não têm que tomar posição, porque não têm neste momento qualquer obrigação de o fazer. Também nunca o pedimos às autoridades portuguesas. Acho que há uma atitude correta, de respeito, e sobretudo de expectativa. É um debate que está aberto na Catalunha, por parte das pessoas, e vamos ver o que acontece. Nós valorizamos isto muito positivamente, porque entendemos que no mundo de hoje, mais do que interferir, o que é preciso fazer é observar, e vimos uma atitude muito correta de observar, atentamente e com respeito, sem interferir, mas também sem tomar posições num ou noutro sentido.

O governo catalão vai assinar amanhã [hoje] um "compromisso com o referendo". O que é que isso significa?

É recordar-nos, não como governo, mas como sociedade, qual é o nosso mandato democrático. É importante porque reiteramos que face a um problema com esta complexidade, como o que estamos a viver na Catalunha, o que o governo faz é responder e respeitar a opinião maioritária na Catalunha, que é o desejo de votar. Entre 75% a 80% entende que a solução passa por votar. Num referendo com todas as garantias em que o "não" e o "sim" possam expressar-se, que tenham igualdade de oportunidades, num procedimento com absoluta imparcialidade. E são estes os termos da nossa oferta ao governo espanhol, o pacto sobre o referendo que está sobre a mesa.

Mas o governo disse que não....

Há muitos anos que diz que não. Nós não perdemos a esperança de que algum dia entendam que isto tem que se resolver. Mas se no final continuarem a dizer que não, nós, no outono, faremos o referendo. O normal, o melhor, o mais lógico seria fazê-lo com o acordo do governo espanhol, mas se continuam a insistir que nem querem falar...porque não é que nos digam que não nos deixam fazê-lo, é que nos dizem que não até em falar. Porque nós dizemos vamos falar, vamos discutir por exemplo a data, a pergunta, o quórum. A resposta é "não queremos falar disto". Mas então o governo espanhol não quer falar do que 75% da população catalã quer. Eles estão a defender apenas os interesses dos que não querem votar, que são a minoria. E nós, governo da Catalunha, temos a obrigação de respeitar os interesses da maioria.

Mas o Tribunal Constitucional também já disse que era inconstitucional...

As decisões que tomaram, por exemplo em relação ao orçamento, são para o caso de um referendo ilegal. Não de um referendo, que é possível e completamente legal.

Mas só se Madrid autorizar.

Se o governo espanhol quisesse podia torná-lo legal, com base na legalidade espanhola. Mas se não o podemos fazer dentro da legalidade espanhola, vamos ter que o fazer dentro da legalidade catalã. Nós não queremos fazer um referendo ilegal. Queremos um legal e com garantias, porque tem que ser vinculativo. Tem que ter consequências. Repito porque é importante: queremos, pedimos, instamos ao governo espanhol a sentar-se a uma mesa e a discutir como, quando e com que pergunta o fazemos. Se continuam a dizer que não, que é o que fazem todos os dias, vamos fazê-lo com a legalidade catalã. Não porque não se possa fazer com a legalidade espanhola, mas porque politicamente o governo espanhol não quer.

Contudo, só com essa legalidade catalã pode haver depois uma nova decisão do Constitucional a dizer que é ilegal?

É muito possível. Então estaremos num choque de legalidades. Mas, repito, o problema não é de ilegalidade, é político.

Com a consulta de 9 de novembro de 2014 houve depois consequências legais para o ex-presidente da Generalitat, Artur Mas, que está proibido de concorrer a cargos públicos durante dois anos, e para outros membros do governo. Quem dará agora a cara pelo referendo depois disto?

Todo o governo. Nós, amanhã [hoje], vamos fazer um ato explicando que, como governo, temos a obrigação e o encargo cidadão de fazer um referendo. Assumimos todas as consequências.

Mesmo enfrentando a possibilidade de ficar vários anos sem poder concorrer a cargos públicos?

Eu acho que não há alternativa. Estamos num momento em que, se um governo leva a tribunal o que é um ato cívico, pacífico, democrático, como o 9 de novembro... Recordo que nessa data estávamos a fazer um voto que não tinha consequências legais, era uma consulta. Mais de metade dos 4,5 milhões de catalães com direito a voto foram votar. Destes, dois milhões a favor da independência, num clima pacífico, nenhum incidente, zero. E o governo leva isto ao tribunal constitucional? Significa que o problema não é legal, é politico. Sim, estamos dispostos a assumir todas as consequências de fazer um referendo. Todas, sem nenhuma dúvida.

O vice-presidente Oriol Junqueras defendeu a hipótese de uma proclamação de independência unilateral...

Bom, o que disse é que no caso de não nos permitirem, de nenhum modo, fazer o referendo e isso significa que não o podes fazer porque te impedem fisicamente, nós vamos fazê-lo na mesma, mas isso terá consequências. Porque, automaticamente, entenderemos que estaremos legitimados para declarar a independência a partir do referendo. Se não nos pudermos expressar livremente num referendo significa que houve uma resposta do estado totalmente injustificada e desproporcionada. As consequências não serão voltar atrás, mas seguir em frente. Mas, insisto, o ponto de discussão é o referendo, que é perfeitamente legal. Se te impedem de fazer um ato legal, o problema é da justiça, o problema é do estado espanhol. Para mim isto é importante porque o que tentamos sempre explicar é que este não é um problema entre a Catalunha e Espanha. É um problema que têm as estruturas do estado espanhol, que continuam a viver no século XVIII e não entenderam que o mundo mudou. Se perguntas à população entre 18 e 30 anos, em toda a Espanha, a maioria está mais a favor que se vote na Catalunha do que contra. O que significa que as pessoas não têm medo. Os referendos são instrumentos que se utilizam cada vez mais, às vezes ganham-se, às vezes perdem-se, às vezes o resultado agrada mais, outras vezes não te agrada. Mas o problema não é o referendo, o referendo é um instrumento para resolver problemas complexos, políticos. E é um instrumento que, além disso, nos últimos anos, se utiliza cada vez mais. Por isso o problema não é o referendo. O problema é o resultado ao referendo. Dizem-nos que não podem votar porque a maioria das pessoas está contra. Pois, perguntemos. Se acham que a gente não quer a independência, perguntemos.

Então não acha que o independentismo está a perder força?

O que sempre dizemos é que, em vez de estar a discutir sobre sondagens, em que uma pode dar um resultado, outra outro, que se vote. Até quando nos dizem que o "sim" está a perder, nós insistimos: votemos. Porque para nós não é só importante que ganhe o "sim", o mais importante é a autodeterminação. Isto é, que as pessoas decidam. Se as pessoas decidirem que "não", então as pessoas disseram "não". Para mim, esse resultado é válido. Se a maioria disser que não quer que a Catalunha seja um estado independente, para mim, que estou a favor que seja, isto é válido. Quando me dizem, não há maioria. Votemos. Se não há, que problema há em votar?

Em relação ao evento de amanhã [hoje], os críticos dizem que é uma forma de calar os problemas internos dentro da coligação de governo e há quem diga que, na realidade, o governo já sabe que não vai conseguir o referendo e já está em pré-campanha...

Mas repare quem diz isso?

O ex-presidente da Unión, Duran i Lleida, ...

Quem diz isso são os que estão contra e que, obviamente, estão constantemente a defender que não pode haver referendo e procuram articular um relato que justifique a sua tese. O que para mim tem muito valor é que este é um movimento que vai desde a esquerda aos mais conservadores, é um movimento transversal, que para mim é o que dá mais valor, porque é um movimento que põe as ferramentas e o direito coletivo a ter instrumentos institucionais e políticos à frente da ideologia. O governo obviamente é um governo plural, onde há gente de PDeCAT, da Esquerra Republicana, pessoas que não somos dessa tradição, mas que partilhamos todos essa necessidade de resolver um problema pela via democrática e sobretudo de exercer o direito à autodeterminação. Que o povo decida. Há diferenças, evidentemente, lógico. Estas diferenças têm a ver com o referendo, não, nada. Neste tema, há um consenso absoluto. Há diferenças ideológicas sobre o modelo de país? Sim, claro. É lógico. De facto, noutras circunstâncias, este acordo não seria possível ou seria mais difícil. Mas no referendo não há diferenças, porque viemos fazer isto, porque precisamente temos a obrigação. Seria uma fraude não o fazer. Temos uma obrigação política, eleitoral, fizemos uma campanha com um programa eleitoral que dizia que nós íamos permitir que as pessoas decidissem o seu futuro. A fórmula que encontrámos, que é a que tem mais consenso, é um referendo. Temos que fazer isto. A partir daqui cada um tem a sua visão do país, do mundo, há diferenças. Por isso, o ato de amanhã é para, uma vez mais, explicar que viemos fazer isso e que se alguém tem dúvidas, que as tire da cabeça. Porque não temos alternativa.

E falar de eleições antecipadas faz sentido?

Não, não faz sentido. Já as fizemos. Nas eleições 48% votou explicitamente que "sim" a partidos independentistas, 39% votou explicitamente que "não". E havia 12% de pessoas que nem "sim", nem "não", mas estavam a favor de votar. Aí tens a grande maioria do país. Se tu somas os do "sim" com os que querem votar, é a grande maioria. Haverá eleições, claro, depois. Quando houver o referendo, depois haverá um resultado. Se for "não", haverá eleições, obviamente, porque o governo vai sair. Se for "sim", terá que haver eleições constituintes, para fazer uma assembleia constituinte. Evidentemente haverá eleições, depois.

E, nesse caso, já não teremos uma grande coligação Junts pel Sí?

Ainda estamos muito longe. De momento, o compromisso da coligação e do governo é para o referendo. A partir daqui, o cenário futuro, está absolutamente aberto.

Na Escócia houve um referendo legal, ganhou o "não", e agora estão a planear outro referendo. Como veem isso?

Desde logo que é possível votar e que a consequência da democracia é negociar. Votou-se e decidiram que "não" e não aconteceu nada, não houve problemas. Se tivessem dito que "sim", também não haveria problemas. Começaria um processo de negociação para que a Escócia se convertesse num novo estado membro da União Europeia, enquanto estado independente. Tanto o "não" como o "sim" podem gerir-se com total normalidade. Qual é a consequência da democracia? Negociação. O que acontece agora tem a ver com a democracia. Agora, houve uma mudança de status quo, por causa do brexit. Democraticamente o Reino Unido votou. Maioritariamente decidiu sair da UE, mas a Escócia quis ficar. Então, como muitas pessoas votaram condicionadas em ser membros da UE, dizendo que votaram "não" porque tinham medo, erradamente, de sair da UE, e agora sentem que são expulsas, por isso querem voltar a votar. Porque querem continuar a pertencer à UE. Eu preferia que ganhasse o "remain". Mas ganhou o brexit. É uma coisa que não tinha acontecido nunca nos 60 anos de UE, nunca um estado tinha saído. É preciso negociar. O mesmo acontecerá se a Catalunha votar que "sim" no referendo, haverá que negociar muitas coisas, haverá que negociar com Espanha, com a UE.

É assim tão certo que, após o referendo, a Catalunha possa continuar na UE?

Politicamente e juridicamente é totalmente possível. Será preciso negociar os termos. Óbvio. É um divórcio, uma separação. Haverá que negociar com Espanha. E Catalunha e Espanha terão que negociar os dois a sua nova situação com a União Europeia. Espanha também perderá 7,5 milhões de habitantes, um PIB que é 20% do seu PIB, uma capacidade exportadora que é muito importante. Portanto, Espanha também terá que negociar. Será uma dissolução do estado espanhol. Há quem fale numa separação, mas não é. Porque o estado espanhol que nasceu do pacto constitucional pós-franquista, de 1978, rompeu-se com a sentença do Estatuto da Catalunha do ano 2010. Portanto, o estado espanhol está em questão. Se a Catalunha vota democraticamente em fazer um novo estado, o que se passa é que a Espanha dissolve-se como estado. E será preciso negociar.

No momento do brexit, acha que a UE estará interessada noutro debate?

A questão não é se estará interessada, o tema já está sobre a mesa. Porque o facto de a situação da Catalunha, em relação a Espanha, não estar resolvida é um problema. É um problema para Espanha, é um problema para a Catalunha, é um problema para a Europa. O que dizemos é que face a esse problema há uma solução, que se chama democracia. Não é que a Europa esteja interessada, porque obviamente o que a Europa queria é que este problema desaparecesse. E portanto falam de um problema interno de Espanha. Nós já dissemos que o podemos resolver falando com o governo espanhol. Mas o governo espanhol não quer sentar-se a falar. Existe um problema, assumamo-lo, e existe uma solução, que é democrática. Temos uma grande oportunidade porque, no fundo, o que se passa hoje não interessa a ninguém. No dia de amanhã, Catalunha, o resto de Espanha e Portugal serão aliados em muitos temas, porque o iberismo é uma realidade que culturalmente, economicamente, politicamente, antropologicamente, nos dá muitas coisas para partilhar. Estou a favor de um entendimento ibérico entre Catalunha, Espanha e Portugal. Porque temos muito em comum e porque no dia de amanhã haverá relações perfeitamente construtivas entre nós. Mas temos que superar este problema em que estamos agora e que se chama referendo.




[Foto: PAULO SPRANGER/GLOBAL IMAGENS - fonte: www.dn.pt]

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