sexta-feira, 31 de março de 2017

“O ser humano é estômago e sexo” - Pedro Juan Gutiérrez

Em 'O Rei de Havana', romance devastador do cubano Pedro Juan Gutiérrez, autor esfrega a miséria cubana na cara do leitor.
Pedro Juan Gutiérrez
Por Eder Alex
No filme Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis, há uma cena famosa em que o personagem do padre diz enquanto caminha por entre vielas cheias de casas arruinadas: “O ser humano é estômago e sexo, e tem diante de si uma condenação: terá obrigatoriamente que ser livre”. Enquanto lia a obra de Pedro Juan Gutiérrez, esta cena ficou o tempo todo rondando a minha mente, pois até então eu não me havia deparado com uma história que se alinhasse de forma tão perfeita com esta visão assombrosa a respeito da existência.
O Rei de Havana, escrito em 1999 e relançado em nova edição este ano pela editora Alfaguara, com tradução de José Rubens Siqueira, é o tipo de livro que costumo chamar de “uma tijolada na cara”. Não que ainda tenhamos alguma fé na humanidade, mas se resta algum vestígio de esperança aí dentro de você, ele certamente desaparecerá ao ler a história desse jovem chamado Reinaldo, que perde a família de uma forma estúpida e passa a levar uma vida de pura miséria pelas ruas de Havana, onde só há espaço para a fome e o sexo.
O estilo direto, permeado por um lirismo cortante do autor de Trilogia Suja de Havana está presente também no romance. As descrições das cenas de sexo (nas modalidades mais diversas) são de fazer corar até mesmo os frequentadores mais assíduos do RedTube. Não há meias palavras na prosa de Gutiérrez, o que vemos ali, como bem definiu o escritor Cristovão Tezza, é uma espécie de “sinceridade bruta”.
Eis um exemplo: “Nenhum dos dois se incomodava com a sujeira do outro. Ela tinha uma xota um pouco ácida e a bunda cheirando a merda. Ele tinha uma nata branca e fedia entre a cabeça do pau e a pele que a rodeava. Ambos cheiravam a bodum nas axilas, a rato morto nos pés e suavam. Tudo isso os excitava. Quando não aguentaram mais foi porque estavam extenuados, desidratados, e anoitecia. Ela e os outros viviam ali ilegalmente porque o edifício podia desmoronar a qualquer momento. Portanto, não tinha água, nem gás, nem eletricidade. Não tinham nem uma vela. Anoiteceu e continuaram jogados na enxerga, no escuro, meio bêbados, meio estupidificados de tanto exagero de sexo”.
Você trancou a respiração enquanto lia, né? Agora imagine um livro inteiro seguindo esse estilo narrativo. É um troço muito perturbador.
Reinaldo ocupa um trono em ruínas, seu mundo está sempre prestes a desabar de vez, como os prédios imundos nos quais ele dorme, sempre remetendo a uma Cuba histórica que já se foi e que só deixou a miséria como herança. A bebida não precisa ocupar a mente, pois já não há nada ali, nem mesmo a noção de tempo; já o corpo precisa esquecer as dores da fome e para isso é necessário usar o que resta de energia no sexo, buscando um gozo seco que não significa nada além de uma vontade de expressar o vazio, uma dor que não pode ser traduzida uma vez que o vocabulário é insuficiente para dizer o desespero.
Com a capacidade de raciocínio reduzida em virtude da fome, o personagem só consegue sentir, sem se saber explicar, e quando se depara com algo que parece ser felicidade, algo muito improvável num universo feito de destruição, ele só consegue se expressar com o seu corpo feito um animal: “Rei não disse nada. Pela primeira vez na vida sentiu dentro de si algo incrivelmente bonito, absolutamente inexplicável. Um sentimento desconhecido, mas belíssimo que crescia dentro dele. E sua resposta foi uma ereção formidável, alegre, total. A ereção mais risonha e feliz da sua vida. E treparam como dois selvagens, se amando como nunca antes havia ocorrido entre eles, orgasmos atrás de orgasmos até o amanhecer. Então ficaram dormindo, assim, bem porcos, empapados de suor e sêmen e cascão e fuligem. Dormiam como dois leitões felizes sobre aquela enxerga asquerosa”.
A riqueza de detalhes sobre os submundos de Cuba compõe um painel bastante curioso do país e de seus habitantes. Não há menção a questões políticas e nenhum líder é citado, o que vemos são apenas as consequências histórias, sociais. A última vez que vi uma representação tão perturbadora da fome e das suas sequelas, foi em É isto um homem?, livro em que o escritor Primo Levi relata os dias que passou num campo de concentração nazista. O protagonista de Pedro Juan Gutiérrez pede esmola e rouba, mas nem sempre isso funciona, então no seu cotidiano chega a ser normal ficar dias sem comer, passando a conviver com aquela dor que se torna cada vez mais familiar e desesperadora, o que nos dá uma outra dimensão e quem sabe até nos possibilite desenvolver uma outra perspectiva a respeito dos moradores em situação de rua.
Outro ponto interessante, nestes tempos em que felizmente se discute representatividade de personagens geralmente marginalizados na literatura, é a forma como Gutiérrez desenvolve a personagem da travesti com a qual Rei se relaciona. Fugindo dos estereótipos e das obviedades, Sandra é uma das personagens mais fascinantes do livro, pois no fundo ela é a pessoa que representa alguma normalidade, algum vestígio de civilidade no universo selvagem de Rei. Enquanto Magda, o grande amor do protagonista, é sempre representada como uma pessoa imunda e impulsiva, Sandra surge como uma pessoa inteligente, adorável e a única por ali que se preocupa com higiene. O sexo entre os dois é descrito com a mesma intensidade dos outros personagens e não há nenhum apelo para tentar tornar aquilo bizarro ou cômico, muito pelo contrário, embora haja o estranhamento de Rei, ainda assim impera um tom de normalidade, de aceitação e descobrimento.
Rei de Havana é um romance de formação, ou de deformação, para ser mais específico, pois o arco narrativo não segue um modelo em que há claramente o crescimento do personagem, um conflito e posteriormente a resolução deste conflito. Não, a vida de Rei segue em forma de gráfico negativo rumo ao abismo. Trata-se de um romance em queda, o personagem começa mal e terminará muito pior. E é preciso ter estômago para acompanhá-lo nessa jornada.
O REI DE HAVANA | Pedro Juan Gutiérrez
Editora: Alfaguara
Tradução: José Rubens Siqueira
Quanto: R$ 27,95 (184 páginas)
Lançamento: Janeiro, 2001
[Fonte: www.aescotilha.com.br]


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