Nunca comi 'croquettes' (...) só por causa do nome francês, escreveu Machado de Assis |
Escrito por Sérgio Rodrigues
Aportuguesadas ou não, empregadas fora de contexto ou não, mão na roda ou não, exibicionistas ou não, as palavras estrangeiras formam uma nuvem em torno da nossa língua. Realizou?
Talvez a maioria viva bem com isso, acreditando que, para
usar o modismo deste outono, "língua é sobre dar o recado" e o resto
é frescura. Também não falta quem se angustie.
Será que existe um limite razoável para as importações? Se a
língua está viva –e se mexendo!–, só nos resta relaxar enquanto as fábricas
viram plantas?
Relaxar costuma ser bom conselho. Se vingar a acepção que o
inglês "plant" fez crescer no vocábulo "planta" como um
galho enxertado –bem, perdeu, playboy. O conjunto dos falantes é soberano. Mas
essa história não acaba aqui.
Na distinção famosa de Ferdinand de Saussure, pai da
linguística, uma coisa é língua e outra é fala. A primeira, social, precede e
ultrapassa cada um de nós. A fala, sim, é a casa do falante, onde ele é rei.
A fala é o recorte pessoal feito numa tela imensa de bordas
indistintas. É um parque de diversões e também o domínio das nossas decisões
éticas, estéticas e afetivas.
Se a "planta" industrial lhe cai mal, por parecer
uma tradução preguiçosa que denota servilismo cultural e penúria educacional,
não admita que ninguém lhe negue esse direito.
Sim, a comédia involuntária produzida pelos puristas de cem
anos atrás ensina que argumentos do gênero costumam perder. Isso não
desautoriza o olhar crítico, a ponderação, o humor –pelo contrário! O embate
entre Machado de Assis e Castro Lopes é a melhor ilustração da diferença entre
o crítico e o purista.
Machado e quem? Hoje ninguém fala dele, mas Antônio de Castro
Lopes (1827-1901) foi o príncipe dos puristas. Médico e latinista, ganhou fama
ao propor a substituição de termos franceses por neologismos cultos que ele
mesmo criava.
Uma vez que "chauffeur" (sem aportuguesamento na
época) era francês e "motorista" dormia no limbo dos neologismos futuros,
o autor do livro "Neologismos Indispensáveis e Barbarismos
Dispensáveis" lançou a candidatura de "cinesíforo".
"Reclame" (anúncio publicitário) devia dar lugar a
"preconício", "pince-nez" a "nasóculos",
"abat-jour" a "lucivelo", "avalanche" a "runimol"
etc. Nada disso pegou.
Bom, quase nada. Só faremos justiça a Castro Lopes se lhe
dermos crédito pela criação da palavra "cardápio" em resposta a
"menu". Trata-se de um êxito impressionante. Seu
"convescote", substituto de "pique-nique", é menos usado,
mas também está vivo. Nem tudo é fiasco no reino do purismo.
Machado de Assis dedicou algumas crônicas à cruzada
quixotesca de Castro Lopes. Tratava o homem com ironia, chamando-o de
"nossa Academia Francesa". A rigidez do latinista contrasta
comicamente com a postura nuançada e cheia de humor do maior escritor
brasileiro.
"Nunca comi 'croquettes', por mais que me digam que são
boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei 'filet de boeuf', é
certo, mas com restrição mental de estar comendo 'lombo de vaca'",
escreveu Machado em crônica de 7 de março de 1889.
Ambos revelam estranhamento diante das palavras estrangeiras.
Um as rejeita em bloco, o outro ri delas e de sua própria confusão. Entre o
purista e o escritor, meu lado está escolhido desde sempre.
[Fonte: www.folha.com.br]
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