sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Não sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra

Por Vitor Ramil

Os Rios, de Janeiro e Grande do Sul, estão em franca corredeira para desaguar num mar morto. Na comparação com o Rio tropical, os gaúchos podem até se consolar por não terem eleito um pastor disposto a isolar Porto Alegre com um muro (e olha que o da Mauá está ali dando sopa para um prolongamento), mas precisam encarar o fato de que o governador que elegeram foi capaz de propor, como alternativa para superar uma decretada calamidade financeira, a extinção da Fundação Piratini, leia-se TVE e FM Cultura. Junto com ela seriam extintas outras fundações cuja atribuição é, em última análise, promover o desenvolvimento humano através da cultura e da ciência.
Perto disso os cariocas devem estar achando que seu muro será um cercadinho florido. Já nós, gaúchos, precisamos encarar que, uma vez extintas as fundações, na curva seguinte à da calamidade financeira, nosso Rio (sempre ao Sul, mas cada vez menos Grande), correrá de forma inexorável para a calamidade civilizatória, deixando pelas margens ressequidas a inteligência, a sensibilidade, o pensamento, o conhecimento, a arte, a pesquisa, enfim, todos os bichos e plantas que o governo, sem nos consultar, declarou não prioritários para a nossa existência.
O Rio tropical, que a cultura ajudou a elevar à condição de marca de identidade do Brasil como um todo e ao reconhecimento internacional, deve estar se perguntando por que o Riozinho do Sul toma tal direção se a segunda calamidade agravará a primeira. Como se diz nos botecos de Copacabana: equivale a colocar a cuia e a bomba fora junto com a erva na hora de limpar o mate.
Há quem argumente que a TVE (já chamada à boca pequena entre seus detratores de Televisão Extinta) e a FM Cultura, ambas de valor imaterial imensurável e, segundo consta, de custos irrelevantes diante de outros ralos estaduais, não dão lucro. É um argumento afinado com os daqueles que se opõem ao Estado-empresa, mas, ao mesmo tempo, defendem um governo que funcione como uma empresa no sentido de ter uma gestão racional, ser enxuto, eficiente, buscar resultados etc. Algo assim como uma Empresa-estado. Nada contra a iniciativa privada, muito pelo contrário: eu mesmo, como artista independente, sou um empreendedor. Quanto ao Estado, concordo que um governo deve gerir com racionalidade e gastar só no essencial. A questão é definir o que é essencial.
Se por um lado o conceito de Estado-empresa fracassou, por outro, as medidas de austeridade, como as que agora se anunciam, não têm se mostrado eficazes mundo afora. Não seria hora de prestar atenção a Albert Einstein, que dizia que a imaginação é mais importante que o conhecimento, e arriscar algo novo, uma terceira via, algo tipo uma Empresa-estado-empresa?
É moeda corrente, para ficar no jargão da economia, que a cultura só aparece como prioridade para a maioria dos políticos na hora de pedir apoio aos artistas, aos formadores de opinião ou às comunidades em época de eleições. Só que promessas de campanha já não valem um tostão furado. Então é até de estranhar que nossos políticos, vendo seus pares em Brasília fazerem o que bem entendem, ajam de forma tão parcimoniosa. Por que não aproveitam a onda e chutam logo todos os baldes, já que a tosquice instaurada os respaldaria?
O negócio é fazer caixa a toque de caixa? Ora, deixem de lado os pudores minarquistas e se joguem na BR da máxima imaginação! Os tempos são de pós-verdade. Deem uma chance à Empresa-estado-empresa. Extinguir, pero sin perder la ternura!
Numa Empresa-estado-empresa as extinções não seriam extintas, apenas adaptadas. Do outro da lado da Praça da Matriz, no lugar de um extinto Theatro São Pedro, poderia nascer um bingo (o governo federal se diz “simpático” a ideia de liberá-los), o BinGo Vêrno, ou uma igreja (essas já liberadas além da conta, ou melhor, apesar da conta) a Igreja Prioritária dos Últimos Dias, que recolheria generosos dízimos e arrebanharia votos (não recolheria impostos, claro, mas, sendo uma igreja estatal, ou melhor, empresarial-estatal-empresarial, ficaria elas por elas). O MARGS ajudaria a forrar os cofres se tivesse o acervo vendido e o prédio destinado a um estacionamento rotativo (o nome ficaria mais adequado se mudasse para uma onomatopeia: ARGHS). A Casa de Cultura Mário Quintana é fácil: abrigaria salas comerciais de alto padrão e se chamaria Majestic Business Center. Ainda no centro de Porto Alegre, estando Cultura, Esportes e Turismo fundidos em uma só secretaria, as obras do Multipalco, da querida Eva Sopher, seriam concluídas, mas como uma espécie de circo romano gaudério (com a inextinguível estátua do laçador à entrada): o Coliseu Paixão Cortes, “cortes” do verbo “cortar”, onde seria disputada, entre outros esportes de verniz cultural, a dança do facão às ganhas, da qual apenas um dos contendores sairia vivo. Em tempos de pré-barbárie, como duvidar do êxito desse empreendimento? Seria preciso aumentar o calado do Guaíba para receber tantos turistas.

Com os turistas chegando como abelhas no mel (a expressão não seria compreendida nesse futuro superavitário, pois, segundo pesquisadores fadados à extinção, as abelhas em breve estarão extintas), o governo municipal talvez se animasse a comprar a ideia da Empresa-estado-empresa (literalmente comprar, diga-se de passagem, pois as ideias devem dar lucro também). Com isso, o prêmio Açorianos poderia mudar para prêmio Funcionário do Mês, como no McDonald’s. Caso eu fosse premiado em alguma categoria sênior do tipo “Honra ao Demérito: por ser do tempo em que ainda se aparecia na TV ou tocava na rádio sem pagar jabá”, não deixaria de subir ao palco para receber meu prêmio. Afinal de contas, vão-se os geddéis, ficam os dedos. Mas aproveitaria os quinze segundos de fama do meu discurso para puxar um resto de dignidade do peito e entoar em derradeiro protesto: NÃO sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra!



[Fonte: www.diariopopular.com.br]

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