Escrito por José Francisco Botelho
“Ora, ora, vejam só”,
disse Deus de Si para Si, contemplando a operosa humanidade, nos tempos
pitorescos em que nossos ancestrais bíblicos ainda molhavam os pés nos charcos
remanescentes do Dilúvio; “os humanos formam um único povo e têm uma única
língua; e, assim sendo, tudo o que tentarem realizar estará dentro de seu
poder. Vamos, então, descer à Terra e confundir sua língua, para que não possam
entender uns aos outros”. Todos recordam, naturalmente, as circunstâncias
imediatas que levaram o Criador a instituir a confusiolinguarum. Naquela época desprovida de passaportes, taxas de
câmbio e acordos alfandegários, a petulante raça humana havia se reunido em um
formidável canteiro de obras, na região de Sinear: com tijolos e piche,
começaram a construir uma grande cidade, e nela decidiram erguer uma torre, tão
alta que roçasse os céus.
Deus – Cujo humor, no
Antigo Testamento, costumava ser um tanto cortante – tratou de pôr um fim
àquela extravagância arquitetônica. “E assim o Senhor os dispersou por toda a
terra, e pararam de construir a cidade. Por isso, ela foi chamada Babel: porque
ali o Senhor confundiu a língua de todo mundo”. Ao castigar a hybris de
suas criaturas, o Senhor também garantiu emprego (ao menos, sazonal) para toda
uma categoria de profissionais futuros: os tradutores.
A nostalgia de uma língua universal, pré-babélica,
em cujo seio todas as incompreensões humanas fossem redimidas, haveria de se
abater a intervalos regulares sobre o Ocidente (e suas vizinhanças). O
hebraico, o chinês, o egípcio e o sânscrito foram identificados, em
diferentes momentos, com esse idioma primordial, cuja estrutura exprimiria à
perfeição o próprio arcabouço da realidade.
Alguns pensadores
excêntricos, na impossibilidade de recuperar a língua perdida de Adão, tentaram
inventar-lhe substitutos racionalmente fantásticos. No século XIII, o
franciscano Raimundo Lúlio, Doctor Illuminatus da
Igreja, concebeu uma estranha “máquina de pensar”, cujo objetivo era combinar
ideias universais, montando e desmontando conceitos, numa espécie de
comunicação puramente lógica que transcendesse a divisão de línguas e de
culturas. Sua intenção era usar a Máquina para facilitar a conversão dos
muçulmanos ao cristianismo ‒ mas acabou sendo apedrejado no
Norte da África por uma multidão que falava apenas em árabe.
Quatro séculos
depois, o polivalente jesuíta Athanasius Kircher tentou desfazer a maldição de
Babel alinhando números, pontos e símbolos crípticos: criou uma língua sem
fonemas, formada por abstrações remissivas, em cuja sintaxe impronunciável
redigia suas cartas, para horror e desalento dos destinatários. (Os
interessados nessas frustradas, mas simpáticas aventuras da erudição podem
consultar o excelente livro de Umberto Eco, A
busca da língua perfeita na cultura europeia.)
No que diz respeito ao ofício da tradução, há duas
maneiras iniciais de interpretar o mito de Babel. É possível imaginar que o ato
de traduzir, ao colocar duas línguas em íntimo contato, almeje encontrar uma
brecha, um lampejo, um caminho de volta àquele estuário original de comunicação
pura, em que todos os sentidos estivessem igualmente acessíveis a todas as
mentes humanas. Sob esse ponto de vista, a tradução seria uma forma de reverter
‒ ainda que momentaneamente ‒ a babelização do mundo. Além do tremedal das línguas, o tradutor arguto
poderia discernir e recuperar as formas e as ideias, em sua nitidez pré-verbal.
Também é possível, contudo, interpretar as coisas
da forma inversa. Podemos dizer, sem quebra de verossimilhança, que a tradução
celebra a condição babélica do ser humano: por meio dela, constatamos que
existe em cada língua algo de particular, algo de irrepetível, algo de
infinitamente idiossincrático. Cada idioma tem uma personalidade própria
e nos coloca em contado com determinada faceta da experiência humana no mundo;
ou, como escreveu o filólogo V. V. Ivanov: “Cada língua constitui um
determinado modelo do Universo; e, se temos 4 mil modos diferentes de descrever
o mundo, isso nos torna mais ricos”. A punição divina seria, na verdade, uma
bênção: por tentarmos chegar aos céus, ganhamos a multiplicação dos mundos na
diferenciação potencialmente infinita das línguas.
Existe também uma terceira forma de pensar, que é a
minha: a tradução simultaneamente celebra e transcende o mito de Babel. Ela
aponta para um substrato misterioso e unânime, uma reserva ancestral de
compreensão e experiência que subjaz a todas as línguas; e ao mesmo tempo,
sublinha e intensifica a riqueza e a variedade, a expressão peculiar e
personalíssima de cada idioma. Apanha-se a estranheza essencial de uma
linguagem e tenta-se reinventá-la em outra; e aí ocorre a alquimia das grandes
traduções: em vez de domesticar o que é estranho, elas contaminam de
estranhamento o que nos é familiar e criam algo novo. Curiosa, essa dádiva que
Deus nos deu em forma de castigo e que nos permite imitar ousadamente o
Criador, como os arquitetos de Babel.
José Francisco Botelho é escritor, tradutor e
jornalista. Seu livro A Árvore que Falava Aramaico (Editora Zouk) foi
finalista do prêmio Açorianos de 2012. Para a Penguin/Companhia, traduziu
Contos da Cantuária (indicado ao prêmio Jabuti de 2014), Drácula, de Bram
Stoker, e Romeu e Julieta, de Shakespeare. Outras peças e poemas do Bardo estão
a caminho.
[Fonte: www.estadao.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário