Escrito por Marcelo Franco
Já me disseram que há um ditado que nos lembra que conhecer o mundo
sem ir a Sintra não seria verdadeiramente conhecer o mundo. Bem, não há
como discordar, mas acredito que pecado maior talvez seja ir a Lisboa e
não ouvir fado.
Estamos em Lisboa já há alguns dias, R. e eu, e ainda não ouvimos
fado. Ou antes: ainda não fomos a uma casa de fado, pois já ouvimos
fadistas na rua e também a música, quase sempre de Amália Rodrigues, que
sai das lojas de discos (percebo que escrevi “discos” em vez de “CDs”:
muitas vezes, palavras entregam a idade). E há uma mendiga cega na Rua
Augusta que sempre está cantando e balançando seu copo para recolher
moedas; seu lamento, do qual não entendo nada, fere de um modo pungente
meu coração. (Não sei se R. também se sente assim, preciso perguntar-lhe sobre isso — aliás, noto agora, parece-me que ela ainda não reparou na
mendiga, o que pode significar que os vinhos que tenho bebido talvez
estejam fazendo com que eu transforme coisas banais em situações
memoráveis. Como teste, passarei um dia sem vinho para conferir e, se
não encontrar a velhinha novamente, com certeza ficarei não apenas um,
mas muitos dias sem beber.)
Iremos, claro, ouvir a música na fonte. Antes da aula prática de
fado, porém, faço minhas pesquisas e descubro coisas do balacobaco (uma
curiosidade: a palavra balacobaco tem certa ligação com o samba; qual
seria, se é que existe, a palavra equivalente para o fado?).
O fado tem, como todos os tipos de música, seus mistérios: por
exemplo, não há concordância sequer em relação a sua origem. Para
alguns, ele vem da música dos invasores árabes; para outros, ele
descende dos cantos dos trovadores; há ainda quem o queira fruto das
canções dos marinheiros portugueses que correram o mundo. Muita gente,
contudo, crê que o fado, vejam vocês, viria da nossa música, da modinha e
do lundu, influência brasileira (e africana) que teria chegado a Lisboa
com o retorno da Família Real, em 1821, do Brasil, onde ela aportara,
em 1808, fugida das tropas napoleônicas.
Essa versão de origem brasileira do fado tem defensores famosos.
Mário de Andrade é um deles, tendo até escrito um artigo sobre o
assunto, “As Origens do Fado”, publicado em 1930. E Manuel Antônio de
Almeida sempre é lembrado por ter descrito, em “Memórias de um Sargento
de Milícias”, várias passagens em que há fado — mas, se me lembro bem
das leituras da minha adolescência, esse fado descrito no livro era uma
dança, o que José Ramos Tinhorão, imagino, também demonstra em “Fado:
Dança do Brasil, Cantar de Lisboa. O Fim de um Mito”, publicado por
editora portuguesa (não tenho o livro, que descobri noutro livro de
Tinhorão e venho procurando nas livrarias de Lisboa; portanto, por ora
apenas especulo para depois, quando conseguir um exemplar, conferir).
Com tantas incertezas, fico com algumas definições, por assim dizer,
mais poéticas. Uma delas é a do fado “Tudo Isto é Fado”, que Amália,
sempre ela, tornou famoso:
“Perguntaste-me outro dia
Se eu sabia o que era o fado
Disse-te que não sabia
Tu ficaste admirado
Sem saber o que dizia
Eu menti naquela hora
Disse-te que não sabia
Mas vou-te dizer agora
Almas vencidas
Noites perdidas
Sombras bizarras
Na Mouraria
Canta um rufia
Choram guitarras
Amor e ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é fado
Se queres ser meu senhor
E teres-me sempre a teu lado
Não me fales só de amor
Fala-me também do fado
O fado é meu castigo
Só nasceu para me perder
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer”
Outra definição (explicação talvez seja a palavra mais exata), agora
do poeta José Régio (“Fado Português”), liga o fado às viagens marítimas
— e o poema também é cantado como fado por Amália:
“O fado nasceu num dia
Em que o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava,
Na amurada dum veleiro,
No peito dum marinheiro
Que estando triste, cantava”.
(…)
De qualquer modo, é certo que o fado se alastrou pelos bairros pobres
de Lisboa — ele tem uma nítida identidade urbana —, isso aí pela
primeira metade do século 19. Depois, ele foi aos poucos ganhando os
salões mais requintados, como talvez fosse previsível que acontecesse — o
tango, por exemplo, teve destino semelhante.
Com a chegada de Salazar ao poder, houve, de início, censura de
letras: um decreto até proibiu os “cantos avinhados de vozes roucas e
guitarras pífias”. Mas o fado acabou por se tornar um dos chamados três
efes da ditadura: fado, futebol e Fátima (o santuário), o que o levou a
uma espécie de ostracismo após a revolução de abril de 1974, a Revolução
dos Cravos, por conta dessa identificação, para muitos injusta, do fado
com o Estado Novo português (para outros, a identificação não era
exagerada: Amália Rodrigues foi até vista chorando no enterro de
Salazar). (Uma nota que nada tem a ver com o fado: Manuel, nosso
motorista de táxi de vastos bigodes portugueses — os motoristas de táxi
de Lisboa, confirmando a piada, se chamam mesmo Joaquim ou Manuel —,
disse-nos que “Salazar foi bom para quem não foi preso”. Não percebi
ironia nas suas palavras.)
Com o tempo, o caráter de esquerda da Revolução foi serenando, e o
fado, a partir da década de 80, começou a sair da redoma que lhe fora
imposta. Hoje, como toda música identificada com um país, a exemplo do
tango e do samba, tem servido para tudo, desde valorizar a identidade
nacional até alavancar o turismo. Também seguindo a mesma toada de
outras músicas nacionais, tem havido a valorização de fados tradicionais
ao mesmo tempo em que são feitas as mais curiosas experimentações, as
quais permitiram que se começasse a falar num “novo fado”, com a cantora
Mísia como uma espécie de ícone desse movimento não organizado (e
atenção, leitor, o famoso grupo Madredeus não é fadista e a também
famosa Dulce Pontes não é estritamente uma cantora de fado, já que
interpreta outros tipos de música).
Há algumas figuras sagradas no panteão dos fadistas. Maria Severa
Onofriana, uma espécie de mito fundador, uma protofadista, foi uma
prostituta que viveu em Lisboa há quase dois séculos: nasceu em 1820 e
morreu em 1846, na Mouraria, com fama de grande cantora. Alfredo
Marceneiro (1890-1982), cantor um tanto solene, foi um dos mais
venerados entre os fadistas homens. E, claro, há a onipresente Amália
Rodrigues, que nasceu em 1920 e estreou, com 19 anos (19!), na
legendária casa Retiro da Severa, no Bairro Alto; Amália, falecida em
1999, é a “maior figura de sempre” do fado, como dizem os portugas.
Assim, o que se percebe é que o fado, com ou sem ditadura, novo ou
velho, talvez seja o mais forte elemento de identidade nacional de
Portugal. Algumas músicas mostram essa profunda ligação entre o fado e a
gente portuguesa, como o singelo “Ó Gente da Minha Terra”, que, apesar
de ser de autoria de Amália Rodrigues e Tiago Machado, prefiro na voz de
Mariza:
(…)
“Ó gente da minha terra
Agora é que percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi”
(…)
Feita a lição de casa, pergunto-me: onde é que se canta e toca o fado
hoje? Em Lisboa, há casas de fado por toda a cidade, e não poderia ser
diferente, pois foi onde ele, quaisquer que tenham sido as suas
influências, se fixou de modo definitivo na primeira metade do século
19. Muitas ficam no Bairro Alto e na Mouraria (nome que nos faz ter
vontade de lá ter nascido apenas para dizer “sou da Mouraria”), mas as
mais conhecidas são as da Alfama, bairro que se alastra, ladeira abaixo,
do Castelo de São Jorge até o Tejo, repleto de ruelas e escadarias que
lembram a sua origem medieval.
Portanto, contra fados não há argumentos. À Alfama, então, já que o
bairro “não tem outra canção”, como cantou Amália no fado chamado —
surpresa! — “Alfama”:
(…)
“Alfama não cheira a fado
Cheira a povo, a solidão
Cheira a silêncio magoado
Sabe a tristeza com pão
Alfama não cheira a fado
Mas não tem outra canção”
Não faltam casas de fado no bairro, mas ficamos em dúvida entre duas,
diferentes nas suas propostas. O Clube de Fado é, por assim dizer, mais
turístico, não tanto como o Viejo Almacén, em Buenos Aires, que tanto
estilizou o tango que o transformou num espetáculo insosso, mas é, ainda
assim, frequentado praticamente só por estrangeiros. Fica próximo à Sé,
cuja vista é magnífica à noite, na Rua de São João da Praça, um pouco
antes da verdadeira Alfama. Já a Parreirinha de Alfama, no Beco do
Espírito Santo, é uma casa mais rústica, com pé-direito baixo e entrada
estreita. Também ela parece destinada aos turistas — e o que não é,
nestes tempos globalizados? —, mas lá ainda aparecem muitos lisboetas
(ia escrevendo “alfacinhas”, mas não sei se isso seria aceitável ou
ofensivo). Optamos, então, pela Parreirinha.
Caminhamos na noite fria, mas limpa e agradável, desde nosso hotel,
na Baixa, até a Parreirinha. As ruelas são intrincadas; porém, cumprindo
uma atávica atividade masculina, estudei antes o mapa e, com poucos
erros e pedidos de informações, alcançamos nosso objetivo. Por sorte,
conseguimos a última mesa vaga; ao lado, muito perto de nós, há um casal
de portugueses de meia-idade. Na entrada, recebeu-nos uma senhora
idosa, que depois descobrimos ser Argentina Santos, dona do pedaço,
talvez a última cantora de fado tradicional, castiço (ou fado fado, como
às vezes se diz). Ela nasceu em 1926 — portanto, já passou dos 80 anos —
e abriu o restaurante em 1950. Ao seu lado, um senhor também idoso,
elegante e discreto. A noite com certeza promete.
O local é um tanto apertado, com as mesas pegadas umas nas outras —
onde moramos, isso é defeito; em viagens, é charmoso. Conseguimos chamar
a atenção da garçonete, que corre atarefada entre as mesas, e então
pedimos nossos pratos e o vinho e aguardamos o espetáculo. A comida —
jantamos bacalhau, claro — é saborosa sem ser marcante. Lá pelas tantas
(meço o tempo pelo vinho: na segunda garrafa), num espaço que se abre
entre as mesas, no meio do restaurante, os músicos se juntam e iniciam o
espetáculo; a cada três ou quatro músicas há uma interrupção para que
os clientes façam seus pedidos, e nessa hora os músicos são trocados.
Nada de especial acontece durante as primeiras músicas. Mas em algum
momento um forte sentimento, surgido talvez da acumulação de vinho
bebido e fados já cantados, toma conta rapidamente do restaurante, e os
portugueses vão juntando suas vozes, comovidos, às vozes dos músicos,
enquanto os estrangeiros tentam repetir os refrões que não entendem —
uns ingleses numa mesa próxima são especialmente cômicos nessa
tentativa, repetindo desajeitamente as palavras: as que terminam em “ão”
saem como tijolos de suas bocas.
A emoção é grande quando todos cantam os versos “Coimbra tem mais
encanto/Na hora da despedida”, da famosa “Balada da Despedida”, e atinge
o seu auge, logo depois, com Argentina, agora usando o obrigatório xale
preto, cantando “Volta Atrás, Vida Vivida”, acompanhada ao violão — ou
guitarra portuguesa, não sei bem — pelo senhor que estava ao seu lado
quando chegamos (curiosos, nos perguntamos se ele seria seu marido). A
letra arranca pedaços de nós:
“Volta atrás, vida vivida
Para eu tornar a viver
Aquela vida perdida
Que nunca soube viver
Voltar de novo, quem dera
A tal tempo, que saudade
Volta sempre a primavera
Só não volta a mocidade
A vida começa cedo
Mas assim que ela começa
Começamos por ter medo
Que ela se acabe depressa
O tempo vai-se passando
E agente vai-se iludindo
Ora rindo ora chorando
Ora chorando ora rindo
Meu Deus, como o tempo passa
Dizemos de quando em quando
Afinal o tempo fica
A gente é que vai passando”
Argentina Santos |
A velha Argentina Santos impõe-se,
todos nós estamos com a atenção centrada nela, que não se abala e é toda
seriedade: a mulher não esboça nenhum sorriso. Depois de cantar o
refrão muitas vezes — e cada repetição é um lâmina espetada em nós —,
ela encerra e deixa a clareira entre as mesas, carregando consigo nossas
dores e saudades. Caminha no exíguo espaço entre as mesas com o queixo
apontando para o alto; o brio de quem sabe que merece toda a atenção até
nos faz esquecer o cenário pouco digno, com garçons correndo, barulho
de copos e cadeiras arrastadas. Fascinado, eu a sigo com os olhos; seu
porte me faz lembrar as mulheres duras e longevas da minha família —
imagino que ela seja uma dessas rochas que esteiam todo um clã. R. e eu,
machucados na alma, aplaudimos e tomamos largos goles do vinho, talvez
tentando cauterizar as feridas.
Após mais um intervalo, há ainda Luís Tomar, competente e
compenetrado no seu terno escuro, bem mais novo do que a anfitriã —
devia estar na primeira dentição quando Argentina já fazia sucesso na
Parreirinha. Ele parece ser o preferido de muitos, principalmente de
alguns portugueses que, acredito, sejam clientes cativos da casa (mas
não é o meu: Argentina tem o meu voto). Escrevendo agora, lembrei-me de
uma descrição de uma sessão de fado que emocionou a norte-americana
Frances Mayes, autora de best sellers sobre sua mudança dos EUA para a
Toscana (“Sob o Sol da Toscana” e “Bela Toscana”); tenho certeza, sem
ter ainda relido o texto, que ela se refere a Tomar e à Parreirinha.
Procuro o livro, “Um Ano de Viagens”, e vejo que acertei na mosca (ela
não cita expressamente a casa nem Argentina Santos, mas a descrição do
local e o fato de Luís Tomar ser mencionado comprovam que foi na
Parreirinha que ela teve “sua espinha dorsal transformada num fio
elétrico”, como escreveu):
“O próximo cantor nos derruba de nossas cadeiras. É tão inverossímil! A fadista se encaixa no seu papel, mas Luís Tomar, rígido no seu terno, poderia estar vendendo apólices de seguros. Só para provar que não se deve julgar ninguém pela aparência, a sua voz, tão carregada de emoção contida, cinde os átomos da sala. A paixão ameaça subjugar a canção a qualquer momento, mas permanece contida, num timbre que corresponde exatamente às sinapses dos seus próprios sonhos e anseios íntimos. Gostaria que ele não parasse mais de cantar”.
Tomar, mesmo contido, parte para uns fados mais alegres, como “Oiça Lá, Ó Senhor Vinho”, seguido mais uma vez por todos; os ingleses sofrem de novo com as palavras, cantadas muito rapidamente e com a costumeira omissão de vogais:
“Oiça lá, ó senhor vinho
Vai responder-me, mas com franqueza
Por que é que tira toda a firmeza
A quem encontra no seu caminho
(…)
Vossa Mercê tem razão
E é ingratidão
Falar mal do vinho
E a provar o que digo
Vamos, meu amigo
A mais um copinho”
Argentina Santos é às vezes difícil de entender (o verso “Para eu tornar a viver” vira algo como “Pa ieu turnar a v’ver”), já Tomar tem menos acento português. Mas também ele, depois de deixar todos ofegantes com seus fados rápidos, encerra sua parte. E eu lamento que ninguém cante “Estranha Forma de Vida”, talvez o fado mais famoso interpretado por Amália; eu o conheço desde menino (não poderia dar certo: os garotos da minha idade brincando de pique e eu ouvindo fado). Queria ouvi-lo por isso, por sabê-lo de cor há muito tempo, mas também porque sua letra combina com os turbulentos dias que tenho vivido (melhor dizendo: que estava vivendo no Brasil):
“Foi por vontade de Deus
Que eu vivo nesta ansiedade
Que todos os ais são meus
Que é toda a minha a saudade
Foi por vontade de Deus
Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de forma perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida
Coração independente
Coração que não comando
Vive perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente
Eu não te acompanho mais
Pára, deixa de bater
Se não sabes onde vais
Por que teimas em correr
Eu não te acompanho mais”
Ninguém cantou, paciência, pois o espetáculo termina; pagamos então nossa conta e deixamos a Parreirinha. A noite esfriou muito, a temperatura com certeza está abaixo dos dez graus. Embrulhados nos nossos capotes, R. e eu saímos para enfrentar o frio. As ruas encheram-se, há muita gente nos bares, talvez tomando a última ginjinha (“com ou sem?”, perguntam sempre os portugueses para que os clientes digam se querem ou não a bebida com as ginjas, frutinhas parecidas com cereja e com as quais o licor é feito). A emoção da música que ouvimos ainda está conosco, o frio aumenta mais ainda, a alegria das pessoas nos bares contrasta com a tristeza das letras dos fados. Olho R., especialmente bonita e elegante na sua roupa de inverno, noto que ela está feliz pelo fato de estar em outro país (ela é uma dessas mulheres em que a alegria transforma-se em mais beleza física) e penso que vivemos uma dessas ocasiões que marcam qualquer viagem, um dos momentos que ficarão gravados fortemente na memória e que serão repetidos à exaustão aos amigos. No retorno a casa, a soma de cinco ou seis desses momentos torna-se a própria viagem.
Vamos seguindo, sem trocar muitas palavras, para o hotel. E pensando no que vi e no que ainda verei (espero que sempre na companhia de R.), lamentando “Que estranha forma de vida/Tem este meu coração” e lembrando que “Afinal o tempo fica/A gente é que vai passando”, constato mais uma vez que somente estas novas experiências — viagens, literatura, música, gastronomia — podem me suspender um pouco acima da mediocridade em que vivo, sempre envolvido por obrigações e horários a cumprir e sufocado pelas agressões da vida moderna. Como Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), que era português dos pés à cabeça, eu “tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas”; como ele, eu sou também “vadio e pedinte”, e sei que “Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,/Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:/É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,/É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”. Mas Lisboa e sua música alçaram-me, ainda que por breves momentos, acima disso tudo. E o fado encheu-nos, a mim e a R., da obsessiva saudade portuguesa, essa saudade que já se definiu como uma melancolia feliz e que é “um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece” (D. Francisco Manuel de Mello) — mas, ai de nós, ninguém mais sente saudades como nos tempos de Amália.
Pois é saudoso — melancólico e feliz ao mesmo tempo —, livre das minhas agruras habituais, que leio de novo, no hotel, Pessoa-Álvaro de Campos, e agora é mais forte a ideia de que eu mereço, de que R. merece mais noites assim e menos obrigações maçantes: “Tão pouca heráldica a vida!/Tão sem tronos e ouropéis quotidianos!/Tão de si própria oca, tão de sentir-se despida/Afogai-me, ó ruído da acção, no som dos vossos oceanos!”.
É tarde. Com a música de certa forma ainda presente, olho R., já adormecida, e peço que o fado — sinônimo de “destino” — nos seja leve e que não tenhamos nunca de pedir: “Volta atrás, vida vivida”.
[Fonte: www.revistabula.com]
“O próximo cantor nos derruba de nossas cadeiras. É tão inverossímil! A fadista se encaixa no seu papel, mas Luís Tomar, rígido no seu terno, poderia estar vendendo apólices de seguros. Só para provar que não se deve julgar ninguém pela aparência, a sua voz, tão carregada de emoção contida, cinde os átomos da sala. A paixão ameaça subjugar a canção a qualquer momento, mas permanece contida, num timbre que corresponde exatamente às sinapses dos seus próprios sonhos e anseios íntimos. Gostaria que ele não parasse mais de cantar”.
Tomar, mesmo contido, parte para uns fados mais alegres, como “Oiça Lá, Ó Senhor Vinho”, seguido mais uma vez por todos; os ingleses sofrem de novo com as palavras, cantadas muito rapidamente e com a costumeira omissão de vogais:
“Oiça lá, ó senhor vinho
Vai responder-me, mas com franqueza
Por que é que tira toda a firmeza
A quem encontra no seu caminho
(…)
Vossa Mercê tem razão
E é ingratidão
Falar mal do vinho
E a provar o que digo
Vamos, meu amigo
A mais um copinho”
Argentina Santos é às vezes difícil de entender (o verso “Para eu tornar a viver” vira algo como “Pa ieu turnar a v’ver”), já Tomar tem menos acento português. Mas também ele, depois de deixar todos ofegantes com seus fados rápidos, encerra sua parte. E eu lamento que ninguém cante “Estranha Forma de Vida”, talvez o fado mais famoso interpretado por Amália; eu o conheço desde menino (não poderia dar certo: os garotos da minha idade brincando de pique e eu ouvindo fado). Queria ouvi-lo por isso, por sabê-lo de cor há muito tempo, mas também porque sua letra combina com os turbulentos dias que tenho vivido (melhor dizendo: que estava vivendo no Brasil):
“Foi por vontade de Deus
Que eu vivo nesta ansiedade
Que todos os ais são meus
Que é toda a minha a saudade
Foi por vontade de Deus
Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de forma perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida
Coração independente
Coração que não comando
Vive perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente
Eu não te acompanho mais
Pára, deixa de bater
Se não sabes onde vais
Por que teimas em correr
Eu não te acompanho mais”
Ninguém cantou, paciência, pois o espetáculo termina; pagamos então nossa conta e deixamos a Parreirinha. A noite esfriou muito, a temperatura com certeza está abaixo dos dez graus. Embrulhados nos nossos capotes, R. e eu saímos para enfrentar o frio. As ruas encheram-se, há muita gente nos bares, talvez tomando a última ginjinha (“com ou sem?”, perguntam sempre os portugueses para que os clientes digam se querem ou não a bebida com as ginjas, frutinhas parecidas com cereja e com as quais o licor é feito). A emoção da música que ouvimos ainda está conosco, o frio aumenta mais ainda, a alegria das pessoas nos bares contrasta com a tristeza das letras dos fados. Olho R., especialmente bonita e elegante na sua roupa de inverno, noto que ela está feliz pelo fato de estar em outro país (ela é uma dessas mulheres em que a alegria transforma-se em mais beleza física) e penso que vivemos uma dessas ocasiões que marcam qualquer viagem, um dos momentos que ficarão gravados fortemente na memória e que serão repetidos à exaustão aos amigos. No retorno a casa, a soma de cinco ou seis desses momentos torna-se a própria viagem.
Vamos seguindo, sem trocar muitas palavras, para o hotel. E pensando no que vi e no que ainda verei (espero que sempre na companhia de R.), lamentando “Que estranha forma de vida/Tem este meu coração” e lembrando que “Afinal o tempo fica/A gente é que vai passando”, constato mais uma vez que somente estas novas experiências — viagens, literatura, música, gastronomia — podem me suspender um pouco acima da mediocridade em que vivo, sempre envolvido por obrigações e horários a cumprir e sufocado pelas agressões da vida moderna. Como Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), que era português dos pés à cabeça, eu “tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas”; como ele, eu sou também “vadio e pedinte”, e sei que “Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,/Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:/É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,/É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”. Mas Lisboa e sua música alçaram-me, ainda que por breves momentos, acima disso tudo. E o fado encheu-nos, a mim e a R., da obsessiva saudade portuguesa, essa saudade que já se definiu como uma melancolia feliz e que é “um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece” (D. Francisco Manuel de Mello) — mas, ai de nós, ninguém mais sente saudades como nos tempos de Amália.
Pois é saudoso — melancólico e feliz ao mesmo tempo —, livre das minhas agruras habituais, que leio de novo, no hotel, Pessoa-Álvaro de Campos, e agora é mais forte a ideia de que eu mereço, de que R. merece mais noites assim e menos obrigações maçantes: “Tão pouca heráldica a vida!/Tão sem tronos e ouropéis quotidianos!/Tão de si própria oca, tão de sentir-se despida/Afogai-me, ó ruído da acção, no som dos vossos oceanos!”.
É tarde. Com a música de certa forma ainda presente, olho R., já adormecida, e peço que o fado — sinônimo de “destino” — nos seja leve e que não tenhamos nunca de pedir: “Volta atrás, vida vivida”.
[Fonte: www.revistabula.com]
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