sexta-feira, 22 de março de 2024

Da ditadura e da bossa nova

De Nova Iorque ao Rio de Janeiro, passando por Buenos Aires, o novo filme de Fernando Trueba e Javier Mariscal investiga o desaparecimento, nos anos 70, de um músico da bossa nova. Animação invulgar e multifacetada, com título de nouvelle vague: Mataram o Pianista

Quando a animação serve um desígnio de memória.

Escrito por Inês N. Lourenço 

Um filme que quer ser, ao mesmo tempo, documentário, investigação, drama político e retrato musical? Não era fácil dar vida a Mataram o Pianista. Mas Fernando Trueba conseguiu-o, com a ajuda do designer Javier Mariscal (o mesmo que coassinou outra animação do realizador, Chico e Rita), mergulhando num capítulo da música brasileira que tem tanto de prazer sonoro como de memória trágica. O pianista do título é Francisco Tenório Júnior, e no centro de tudo está o seu misterioso desaparecimento em Buenos Aires, na década de 70, quando se deslocou à cidade para um concerto com a sua banda. Um quebra-cabeças que aqui se explora pela via do desenho animado, com traço forte e cores vibrantes. 

A origem do projeto passa por uma obsessão do próprio Trueba, que há cerca de 20 anos se deparou, pela primeira vez, com o trabalho de Tenório Júnior numa loja de discos, tendo iniciado uma série de entrevistas (até na qualidade de produtor musical, a sua outra faceta) para perceber quem foi essa figura esquecida do panorama da bossa nova, e em que circunstâncias se tinha dado a sua morte - um termo de existência que é sempre referido como um desaparecimento, já que o corpo do músico parece ter sido engolido pela noite da ditadura argentina.  

Deixando cair a ideia de um documentário mais convencional, o realizador espanhol optou então por transformar a sua pesquisa num filme que conseguisse entrelaçar a riqueza visual de um certo contexto artístico com a escuridão política desse tempo na América Latina. E o resultado é este objeto híbrido, que põe em cena um jornalista fictício da New Yorker (substituto de Trueba, claro), com a voz carismática de Jeff Goldblum, a investigar o caso de Tenório, sem que se aperceba logo desse motivo, uma vez que a sua missão inicial é escrever um livro sobre o florescimento da bossa nova. Porém, o ângulo define-se rapidamente e o pianista torna-se o assunto das várias entrevistas, seja a personalidades da música brasileira, como Caetano Veloso e Milton Nascimento, seja aos familiares e pessoas próximas do intérprete desaparecido do mapa.  

Acima de tudo, esta coprodução, que também tem o selo português da Animanostra, supera as suas zonas escuras com um amor visível pelas correntes artísticas da época evocada: é belíssima a sequência que cruza lampejos de rodagem dos primeiros filmes da Nouvelle Vague (Mataram o Pianista é, aliás, um título inspirado noutro de Truffaut) com a frescura dos ritmos instrumentais da bossa nova. No meio deste frondoso e inebriante imaginário, apenas pesa um pouco a sucessão de discursos repetitivos... Sente-se que o filme carece de algum sentido de economia, mesmo tendo em conta os vários anos que Trueba dedicou ao projeto, e que tornam compreensível a vontade de incluir o máximo da informação recolhida; para além dos muitos elogios feitos a Tenório Júnior, esse ser de índole apolítica que não escapou às garras do terrorismo de Estado. Seja como for, a escolha de uma abordagem pela “lente” da animação garante que Mataram o Pianista se mantenha apelativo na proposta e cativante no percurso. 

[Fonte: www.dn.pt]

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