terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Lula

 

Escrito por Sérgio de Almeida Correia

Lula não é, à partida, um nome simpático. O molusco cefalópode não é um bicho atractivo no seu aspecto viscoso e fusiforme, com a enorme massa visceral que faz parte do seu corpo, colocando-se entre a cabeça e os tentáculos. Confesso, porém, que, quando frescas, jovens, viçosas e macias, aprecio saboreá-las.

Ora, isto é tudo o que não se pode dizer de Lula. Não do cefalópode, mas do operário metalúrgico que pela terceira vez, depois de libertado da prisão e politicamente ressuscitado, tomou posse como presidente do Brasil. Este Lula não tem seguramente a elegância, a beleza, os olhos ou o bambolear gingão de uma garota de Ipanema ou do Leblon. Não é fresco, nem jovem, nem viçoso, nem consta que seja macio.

Bem pelo contrário, este vem já curtido por dois mandatos anteriores, por vários escândalos ou situações menos claras, processos judiciais, prisão e, perdoe-se-me a expressão, muita "sacanagem" que também lhe saiu ao caminho, como foi a de um tal Moro de triste memória, que aparentemente impoluto e incorruptível usou técnicas de cafajeste, atropelando a lei ao jeito bolsonarista para levar a água ao seu moinho, até ser politicamente recompensado, o que de nada lhe serviu.

Não sendo neste velho samba-enredo apreciador do personagem Lula – o derrotado Ciro Gomes faz muito mais o meu estilo de político –, admito que, todavia, esses possam ser os seus grandes trunfos no mandato que ontem iniciou, desde que tenha sabido aprender com os erros passados.

Dele não se espera que enverede pelo populismo boçal do seu antecessor, nem que se comporte como uma elegante misse, distribuindo sorrisos e carícias à direita e à esquerda como forma de manter equilibrado o difícil presidencialismo de coligação – uma particularidade brasileira – em que vai ser obrigado a acomodar-se e mover-se para poder governar e dar aos brasileiros aquilo que tanto desejam e merecem.

Se o vice-presidente Alckmin, seu opositor nas presidenciais de 2006, e agora investido em funções que poderão ser essenciais para garantir os necessários apoios nos trade-off do Congresso, com o Senado e a Câmara dos Deputados, poderá ser um trunfo precioso, só o tempo o dirá.

Registo, para já, a forma como foi recebido e investido, a clareza das suas palavras nos discursos proferidos, que não permite segundas interpretações e lhe condicionará o mandato, bem como a presença, no que foi um record, de dignitários estrangeiros à sua posse.

E quanto a este ponto não posso deixar de sublinhar a forma como o Brasil, depois do modo indigno e humilhante como se comportou nos últimos anos o tropa-trolha que ocupou o Palácio do Planalto, voltou a cumprimentar, antes e depois da posse, e a tratar e receber o presidente português. Não por ser Marcelo, mas apenas porque lá esteve em representação de Portugal, num gesto que também não passou despercebido aos milhares de brasileiros que vivem no nosso país.

E também a referência carinhosa que lhe foi feita pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sem soberba ou complexos coloniais, imbuído do espírito que devia, deve, sempre presidir às relações entre dois países que partilham a mesma herança secular, a língua, muitas vezes as paixões e até os defeitos.

Não será fácil reerguer um país que caminhava a passos largos para o desmantelamento das suas estruturas, e ao mesmo tempo devolver a esperança e o pão aos favelados da vida, reentrando no caminho da normalidade, devolvendo dignidade ao Estado e às instituições, cumprindo o desígnio de desmatamento zero da Amazónia, reerguendo os alicerces do estado de direito, da legalidade e da justiça, reforçando a autoridade do Estado federal, a segurança de pobres e ricos, de brancos, pretos, amarelos e mestiços, qualquer que seja o seu credo, opção ideológica ou preferência sexual.

O Brasil é demasiado grande, diferente (bastou ver o minuto de silêncio por Pelé e o papa Bento XVI, que antecedeu a posse, ou ouvir o episódio da caneta de Lula vinda do Piauí) e importante no contexto mundial para poder ser governado à balda, distribuindo "propina" a torto e a direito, escondendo o lixo debaixo do tapete ou promovendo o garimpo ilegal.

Lula da Silva tem uma hipótese única de ser recordado pelas melhores razões. Oxalá que não a desperdice, porque também não consta, mesmo sendo Deus brasileiro, que Este esteja disposto a escrever uma segunda vez sobre linhas tortas.

Não deixe o samba morrer, moço.

Boa sorte, Brasil.

 

[Fonte: delitodeopiniao.blogs.sapo.pt]

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