Escrito por Pedro Correia
Durante anos, li Javier Marías com prazer e proveito na revista dominical do El País. Bastavam as crónicas dele (e guardei várias, arquivando-as entre as páginas de livros, como sempre faço quando gosto muito de certos textos) para justificar a compra do jornal, que há mais de um ano deixou de se publicar nos quiosques portugueses, ao contrário do ABC ou do El Mundo, outros diários do reino vizinho.
Era culto, cáustico e corajoso - três características que aprecio num cronista. Não hesitava em remar contra a maré das modas dominantes, não perdia tempo com bajulações nem ocultava a erudição para seduzir "novas camadas de leitores" em busca da facilidade. Se havia que romper consensos, contassem com ele. Para integrar coros afinados, podiam dispensá-lo.
Este meu interesse pelo Marías cronista alargou-se ao Marías ensaísta. Há um livro dele sobre escritores e leituras que sempre recomendo: Vidas Escritas, em que nos fala de vários dos seus autores preferidos em textos concisos mas luminosos. Ali desfilam Faulkner, Conrad, Rilke, Stevenson, Mishima, Nabokov. E mulheres mestras das letras, como Emily Brontë e a fabulosa Isak Dinesen.
Daí passei ao Marías romancista. Com obras como Todas as Almas (1989) e Coração Tão Branco (1992), em que exibe sem complexos a sua formação anglo-saxónica, a experiência como professor em Oxford, o gosto em ter traduzido Laurence Sterne e Thomas Hardy, a eleição de Shakespeare como autor de cabeceira.
Obra-prima da literatura espanhola, que incluo sem favor entre os cem melhores romances do século XX, Coração Tão Branco (título inspirado em frase de Lady Macbeth) tem um dos melhores parágrafos iniciais que conheço em ficção literária. Daqueles que nos agarram de imediato e nos prendem ao livro do princípio ao fim.
Eis essas primeiras linhas (com sábia tradução de Fátima Alice Rocha para a editora Alfaguara):
«Não queria saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e tinha regressado da viagem de núpcias havia pouco tempo, entrou na casa de banho, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, despiu o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que se encontrava na sala de jantar com alguns membros da família e três convidados.»
Perguntem-me o que é escrever bem. Respondo com esta admirável frase de abertura.
Grande escritor, Marías - prematuramente desaparecido, a escassos dias de completar 71 anos. E sem o Nobel, em nova injustiça cometida pela academia sueca: há muito que o merecia.
Ser politicamente incorrecto, e fazer gala disso, não o favoreceu nesta época de consensos bem comportados. Ele, que não fingia modéstia e exibia «o sorriso da inteligência», como dele disse Juan Cruz. Atributos nada valorizados nos dias que vão correndo.
Até por isso o aprecio. E continuarei a escrever sobre ele no presente, não no passado.
[Fonte: delitodeopiniao.blogs.sapo.pt]
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