terça-feira, 7 de junho de 2022

Não seja um blasê, seja um emocionado: dois dedos de prosa sobre Depp vs. Heard

 

A forma caricatural e essencialista que tanto os liberais como a extrema-direita lidam com o assunto não dá conta de uma realidade cheia de contradições. E esta é a nossa deixa: esta é uma fenda que a esquerda, sobretudo a esquerda anticapitalista, precisa aprender a ocupar.

 

Escrito por Adelaide Ivánova

No livro No Shortcuts: Organizing for Power in the New Gilded Age (2016), da sindicalista estadunidense Jane McAlevey, tem uma frase que eu nunca esqueci: “Se religião importa para a trabalhadora, deve importar para a organizadora comunitária”. No livro, McAlevey analisa vitórias e fracassos de diferentes movimentos sociais, laborais e sindicais e sugere ferramentas práticas de como lutas progressistas podem obter mais vitórias. O livro tem algumas fendas conceituais e organizativas, na minha opinião, mas isso não vem ao caso agora. O ponto é que, nessa passagem em particular, a autora atesta que, para uma luta ser vencedora, é preciso trazer a vida da trabalhadora, suas paixões e hobbies, para dentro da luta. Assim, ao invés de ignorar que as trabalhadoras gostam de baseball ou vão à igreja com frequência, a pessoa que tenta organizar politicamente essas trabalhadoras deve levar isso muito a sério.

Já usei essa frase com frequência nas minhas próprias atividades militantes, mas sobretudo tento aplicar essa sugestão na minha própria práxis. Só que, de uns dias pra cá, ela tem ecoado na minha cabeça com muito mais força diante do desenrolar do processo de difamação que Johnny Depp moveu contra sua ex-esposa, a também atriz Amber Heard.

Aí agora você se pergunta: que danado a frase de uma sindicalista de esquerda tem a ver com o show trial de dois milionários de Hollywood? Você tem razão: nadinha. O que a frase tem a ver, no entanto, é com como a esquerda estadunidense lidou – ou melhor, não lidou – com o assunto.

Um pouco de contexto, bem resumidão: em 2016, Amber Heard pede o divórcio e solicita a aplicação de medidas protetivas, alegando que Depp era abusivo com ela. Em 2017, sai o divórcio. Em 2018, ela assina um texto no Post com o título “Falei contra a violência sexual – e enfrentei a ira de nossa cultura. Isso tem que mudar”, no qual relata diversas experiências de abuso, mas sem citar o nome do ex-marido nem uma única vez. Ainda em 2018, Depp processa o jornal britânico The Sun por difamação, pelo jornal tê-lo chamado de “espancador de esposa” (sendo que a corte britânica decidiu que havia indícios suficientes de que Depp é mesmo um abusador e assim ele perdeu o processo). Em 2019, o ator abre processo contra a ex-esposa por difamação, pelo artigo no Post de 2018 (sim, o que não o citava nenhuma vez). A audiência começa em abril de 2022 e dura seis semanas, tendo sido ininterruptamente transmitida ao vivo pelo YouTube. E termina com o veredito favorável a Depp, em 1º de junho de 2022.

Nessas seis semanas, a extrema-direita norte-americana conseguiu cooptar completamente e liderar o andamento do debate com dois trending topics no Twitter (#JusticeForJohnnyDepp e #AmberTurd) que furaram todas as bolhas. A extrema-direita capitaneou a opinião pública para gerar o senso comum de que a vítima, aqui, não é Amber Heard, e sim Depp, mas sobretudo os homens americanos, que seriam as “vítimas reais” de denúncias mentirosas, das “feminazis” e dos liberais que, segundo eles, querem atolar goela abaixo que se deve acreditar na palavra das mulheres que denunciam seus agressores.

O debate público em torno do processo judicial se focou em questionar marcos civilizatórios como a liberdade de expressão (já que o motivo oficial do processo movido por Depp foi o artigo de Heard) e em minar os poucos e limitados progressos que conquistamos desde o #metoo. Para conseguir isso, os assim chamados ativistas dos direitos dos homens, liderados por figuras como o extremista-branco Ben Shapiro, espetacularizaram e expuseram não somente o processo em si, como também a vida privada e o caráter de Amber Heard, tratando-a como “vadia”, “maluca”, “não confiável”, “destruidora de famílias”, “interesseira”, “promíscua”, “violenta” etc. Soa familiar? É porque é: a tática da victim shaming não é nova, basta lembrarmos de exemplos como o estupro na Irlanda, no qual a calcinha da vítima foi usada pelos advogados de defesa do estuprador, para “provar” que ela era queria ser estuprada; ou da aberração jurídica que foi o caso Mariana Ferrer.

Desta vez, no entanto, e dadas as circunstâncias, a tática de victim shaming foi usada não apenas pra proteger um homem específico: ela foi usada pra convocar massas a tomar partido em torno de um projeto político. A extrema-direita acabou conseguindo fazer com que o veredito estivesse pronto antes mesmo de o processo terminar. Quem saiu vitorioso não foi apenas Depp, foi sobretudo a extrema-direita estadunidense. É grave, minha gente.

Numa perspectiva crítica e à esquerda, o que o andamento do debate público em torno do caso revelou é o grau de incapacidade que tanto a direita como os liberais têm de produzir análise correta da realidade – e de como a esquerda falhou em interferir na questão. Se a direita faz uma caricatura da realidade ao dizer que “nem todo homem”, os liberais também fazem uma caricatura da realidade ao abraçar com enorme rapidez e de forma acrítica a cultura do cancelamento. Uma análise da cultura do estupro que dê conta da complexidade da vida das pessoas é, de fato, um exercício complicado e doloroso: não é fácil aceitar que estupradores não são monstros, e que têm amigas, mães, namoradas, filhas e podem ser até pessoas incríveis. Como lidar com essa contradição? Com cancelamento é que não devia ser.

Quando a única coisa que os liberais têm a sugerir como solução para estupros é que homens acusados do crime sejam demitidos, cancelados, ou passem por um processo de morte social, liberais não somente não responsabilizam o estuprador de fato, como tampouco trazem reparação concreta para as vítimas. Pior: nessa “antipráxis” não há nenhuma sugestão concreta de mudanças estruturais e de longo prazo. O fruto dessa antipráxis é um vácuo perfeito para ser ocupado pela extrema-direita, que contra-ataca, dizendo que a demanda “acredite nas palavras das vítimas” é inaceitável, já que o que existe, na verdade, seria uma caça às bruxas contra os homens. É um plot twist terrível, mas muito bem utilizado.

Ora, se considerarmos que apenas cerca de 4,5% das denúncias são falsas, então a ideia de “acredite em todas as vítimas” é embasada na realidade material. Mas a partir disso, qual é a proposta que temos a fazer? Cancelaremos todos os homens? Cancelaremos e exporemos nas redes sociais suas mães, amigas, esposas que não os cancelarem?

Apesar de Heard ter trazido inúmeras evidências dos abusos, ela perdeu não somente o caso, mas ainda antes o apoio da mídia liberal, que se calou diante do caso (ao menos até a publicação do veredito). Mas podemos olhar de outra forma: ela perdeu o processo justamente por não receber o apoio da mídia liberal. E a razão da mídia liberal ter-se calado foi exatamente por não saber o que fazer diante de uma realidade complexa que o próprio liberalismo ignora: é fácil esbravejar “acredite em todas as vítimas” quando a vítima é virginal, tímida ou vulnerável. Agora, exercitar o “acredite em todas as vítimas” com uma vítima imperfeita, quase detestável, como Heard, aí é outra história. É por isso que jargões vazios, convocações de cancelamento ou elevação de alguém à categoria de “fada sensata” não servem de nada.

A forma caricatural e essencialista como tanto os liberais como a extrema-direita lidam com o assunto não dá conta de uma realidade cheia de contradições. E esta é a nossa deixa: esta é uma fenda que a esquerda, sobretudo a esquerda anticapitalista, precisa aprender a ocupar. No que diz respeito a Depp vs. Heard, a esquerda perdeu mais essa oportunidade ao torcer o nariz e ausentar-se da questão. O processo revelou a nossa arrogância e a nossa falta de planos para interferir em polêmicas que não estariam, digamos assim, à nossa “altura” intelectual ou moral.

Não me surpreende, infelizmente, que a esquerda não tenha participado da conversa (e quando digo “esquerda” não estou falando de mim e você, com nossa meia dúzia de seguidores no Instagram: estou falando dos grandes veículos impressos, podcasts, influenciadores e comunicadores da esquerda, dos EUA sobretudo). O que me surpreende é que, mesmo depois de o caso ter sido cooptado pela extrema-direita e ter deixado de ser um debate cultural para virar uma disputa política, a esquerda continuou ausente. Vá lá, a gente pode até não estar a fim de falar de Johnny Depp, mas a gente tem o dever de analisar qualquer nova articulação de grande porte dos nossos oponentes – afinal, nessas novas articulações, eles estão ganhando pessoas com as quais nós também devemos dialogar e conquistar, entende? É de tática que eu estou falando.

A gente pode até continuar achando que Anitta, Hollywood, k-pop e tecnobrega não têm nada a ver com a gente, mas a maioria absoluta das pessoas consomem esses bens culturais e aglutinam-se em comunidades em torno desses artistas. Aqui volto à Jane McAlevey, mas fazendo uma paráfrase: se Hollywood importa para a trabalhadora, deve importar para a esquerda. A gente não se pode dar ao luxo de ignorar esses assuntos que fazem parte do tecido da vida das pessoas.

No fundo, eu também queria poder cagar e andar para Depp e para Heard. Mas, ainda que as chuvas em Recife me ocupem muito mais agora, eu me recuso a cair no cinismo de ignorar a importância do caso. O imperialismo estadunidense não é algo a se subestimar e é por isso que é apenas uma questão de tempo até que comecemos a sentir as consequências. A forma como a opinião pública esteve massiva e desavergonhadamente do lado do abusador indica que uma mudança de paradigma se delineia, depois de apenas meia década em que a ideia basicona de que devemos acreditar nas palavras da vítima se tornou um pouco mais aceita.

O resultado Depp vs. Heard pode fazer as coisas andarem anos para trás, como indica Raven Smith em artigo para a Vogue: “Os detalhes dos depoimentos de Depp e Heard são angustiantes por si sós – horríveis, violentos e contendo anedotas profundamente íntimas sobre o relacionamento deles. De um modo geral, os depoimentos de testemunhas podem ser persuasivos e, com dois atores no banco dos réus, nunca podemos ter certeza da verdade absoluta. Ainda assim, e apesar de o Supremo Tribunal de Londres ter considerado as alegações de que Depp é um ‘espancador de esposas’ como ‘substancialmente verdadeiras’, a internet escolheu ficar ao lado de Depp”.

Soa ingênuo dizer “a internet escolheu isso ou aquilo”, mas a premissa deve preocupar-nos muito, não exatamente pelo futuro dos dois envolvidos diretos, mas pelo das mulheres dos 99%. No fim das contas, Depp e Heard não deixam de ser multimilionários usando da justiça burguesa para “fazer justiça” dentro dos moldes burgueses. No entanto, é preciso aceitar a triste realidade que, mesmo que a gente não goste, o imperialismo cultural dos EUA é real e o que foi decidido na corte do estado da Virgínia provavelmente vai piorar a vida de milhares de mulheres que decidam denunciar seus agressores, não somente nos EUA, mas no mundo inteiro. Lembrando que, no Brasil, a maioria das mulheres vítimas de estupro e violência doméstica são negras e periféricas – assim sendo, esse veredito pode trazer consequências desastrosas para a vida de pessoas já mais vulneráveis.

Na minha opinião, algumas lições ficam disso tudo: uma é que a luta contra o machismo deve estar sempre aliada à luta anticapitalista e, esta, ao antirracismo. Sem isso, o feminismo não libertará nenhuma de nós. Sem uma perspectiva classista, criamos uma análise caricata da realidade, que deixa de levar em consideração relações e vidas complexas. E, ao fazermos análises erradas, agimos erroneamente. A forma como o feminismo liberal lidou com o caso é um exemplo disso. Temos a obrigação de não repetir o mesmo erro, enquanto esquerda anticapitalista. Aliás, o cantor Marilyn Manson, denunciado e preso por ter abusado sexualmente da ex-esposa, já anunciou que também a vai processar por difamação. A extrema-direita já está amolando as facas e até uma hashtag já está pronta: #IStandWithMarilynManson, que em poucas horas já vai em mais de 28 mil publicações só no Instagram. E a nossa tática, qual vai ser? Espero que não seja a do W.O.

Para pensar sobre o tema

 

Feminismo para os 99%: um manifesto, de Nancy Fraser, Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya
Moradia inacessível, salários precários, saúde pública, mudanças climáticas não são temas comuns no debate público feminista. Mas não seriam essas as questões que mais afetam a esmagadora maioria das mulheres em todo o mundo? Inspiradas pela erupção global de uma nova primavera feminista, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, organizadoras da Greve Internacional das Mulheres (Dia sem mulher), lançam um manifesto potente sobre a necessidade de um feminismo anticapitalista, antirracista, antiLGBTfóbico e indissociável da perspectiva ecológica do bem viver.

Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais, de Silvia Federici
Por que voltar a falar, hoje, sobre caça às bruxas? Em Mulheres e caça às bruxas, Silvia Federici revisita os principais temas de um trabalho anterior, Calibã e a bruxa, e brinda-nos com um livro que apresenta as raízes históricas dessas perseguições que tiveram como alvo principalmente as mulheres. Federici estrutura sua análise a partir do processo de cercamento e privatização de terras comunais e, examinando o ambiente e as motivações que produziram as primeiras acusações de bruxarias na Europa, relaciona essa forma de violência à ordem econômica e argumenta que marcas desse processo foram deixadas também nos valores sociais, por exemplo, no controle da sexualidade feminina e na representação negativa das mulheres na linguagem.

Gênero, neoconservadorismo e democracia, de Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione
Fruto de uma investigação transnacional realizada no decorrer de 2018 e 2019 e de um profícuo diálogo envolvendo as duas autoras e o autor, esta obra analisa as relações entre gênero, religião, direitos e democracia na América Latina. Com o fim da chamada “onda vermelha” na região, é significativo o aumento da atuação de católicos e evangélicos conservadores na política, com forte reação às políticas de equidade de gênero, direitos LGBTQI e saúde reprodutiva. Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione destacam o uso, por agentes conservadores, de expressões como “ideologia de gênero”, “feminismo radical” e “marxismo cultural” para justificar normas que promovem exclusões, vetos a perspectivas críticas e o fim de políticas públicas importantes para mulheres e minorias, corroendo, por dentro, a democracia na região.

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Adelaide Ivánova é pernambucana, poeta e organizadora comunitária da campanha Deutsche Wohnen und Co. Enteignen, que luta pela expropriação de grandes empresas do aluguel, em Berlim, onde mora desde 2011. Em 2017, publicou o livro de poesia documental o martelo, que investiga a retraumatização causada por um processo judicial por estupro. Em 2018 o livro venceu o prêmio Rio de Literatura na categoria poesia.

 

[Fonte: blogdaboitempo.com.br]

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