quarta-feira, 10 de maio de 2017

O triunfo da simplicidade

O belíssimo 'Nossas Noites', de Kent Haruf, conta uma delicada história sobre velhice, solidão e a possibilidade de dar novas chances para a felicidade.



Por Eder Alex

Ainda é meio cedo para falarmos em listas de final de ano, mas já de cara vou começar arriscando um palpite: Nossas Noites, escrito pelo norte-americano Kent Haruf, aparecerá nas listinhas de melhores leituras de muita gente lá em dezembro.
O livro publicado recentemente pela Companhia das Letras com tradução de Sonia Moreira chegou bem quietinho, já que não era exatamente um lançamento aguardado, pois Haruf, que morreu em 2014, não parece ser um nome muito conhecido aqui por estas bandas, embora suas obras tenham sido finalistas de alguns prêmios importantes como o National Book Award. Eu mesmo vi o romance na livraria e o ignorei solenemente, mas os amigos trataram de me convencer de que aquele livrinho aparentemente inofensivo valia muito a pena.
E não é que vale mesmo?
Nossas Noites conta a história de uma viúva septuagenária chamada Addie, que um dia resolve visitar o seu vizinho Louis, também viúvo e da mesma faixa etária, para lhe fazer a seguinte proposta: já que os dois perderam seus cônjuges e se sentem tão sozinhos, que tal eles começarem a passar as noites juntos? Assim mesmo, na lata. A ideia nem é ter um parceiro sexual, mas sim alguém para dividir a cama e as histórias, para conseguir atravessar as longas e solitárias noites num pequeno condado no Colorado.
O livro parte de uma premissa que parece um tanto inusitada, mas Kent Haruf demonstra pouco interesse em praticar algum tipo de malabarismo narrativo e segue uma estrutura convencional que não pesa a mão ao ir soltando pequenas revelações a respeito do passado dos protagonistas, embora o faça de uma maneira bastante comovente. O tom num geral é sutil, o enredo acompanha os pequenos detalhes e as conversas aparentemente banais que aos poucos ganham significados maiores, como num filme de Richard Linklater.
Isso também se reflete na linguagem, mas de uma maneira que sugere uma falsa simplicidade. Falsa no sentido de que não é nada fácil polir as frases até que elas cheguem a esse essencial, livre de afetações que costumam impregnar as vozes dos narradores. Haruf não usa uma linguagem seca, mas tampouco faz uso de firulas linguísticas ou de lirismo afetado, quando a poesia surge aqui e ali, é por causa das circunstâncias em que os personagens estão inseridos e não apenas por uma questão estética.
Boa parte desse efeito se dá porque os diálogos dos personagens são muito convincentes (e os dois são adoráveis, diga-se). Quando eles falam, parecem reais, dá vontade de abraçá-los e dizer que tudo vai ficar bem, mesmo que não vá ficar nada bem. Nesse sentido, o livro é uma aula de como escrever bons diálogos, já que eles são compostos de maneira muito orgânica, deixando transparecer singelos traços da personalidade dos dois velhinhos, bem como o nascimento do afeto e da intimidade entre os dois. O autor encontrou um equilíbrio entre a vontade de contar uma bela história e a forma utilizada para alcançar esse objetivo, sem desvios, sempre em direção ao que é essencial (o autor desaparece para deixar a história fluir de forma natural). A técnica é complexa e está toda ali, mas ela não precisa aparecer mais do que a história, então essa busca pela simplicidade se torna algo admirável.
Para além das questões da forma, Nossas Noites é, basicamente, um livro sobre o amor na velhice. É uma obra delicada que direciona um olhar repleto de ternura para aqueles personagens que vão se construindo ali na nossa frente, enquanto acompanhamos a sua aproximação, os seus anseios e suas dúvidas.
Addie e Louis passaram dos 70 anos e estão se deparando com uma coisa nova, justamente numa época em que poderia passar pela cabeça deles que já não haveria grande coisa ainda a ser descoberta a respeito da vida. É claro que cada um deles carrega dentro de si um emaranhado de sentimentos, de cansaços, de histórias e de cicatrizes bem profundas, mas eles criaram juntos uma oportunidade de transformar a sua realidade e escapar dos estereótipos ou dos papéis infelizes que a sociedade ao redor espera deles. Por isso, Nossas Noites é, também, um livro sobre não desistir (não dos seus sonhos, aí é com a autoajuda, mas no sentido de não desistir daquilo que se é, daquilo que nos restou e tentar tocar a vida em frente apesar de tudo, redescobrindo velhos caminhos através de um novo olhar. Enfim, é sobre redescobrir um interesse genuíno pela vida num mundo em que a gente não encontra muitos motivos para levantar da cama além dos boletos para pagar).
A solidão gerada pelo abandono é uma das coisas mais tocantes do livro: abandono daqueles que se foram ou ainda daqueles que, por diversos motivos, acabaram optando ou tendo que optar por não permanecer ao lado das pessoas que amam. Outros personagens surgem ao longo da narrativa e esses traços doloridos da solidão também vão sendo identificados, já que todos ali buscam algum tipo de contato, uma mínima proximidade que torne o mundo mais suportável. São seres humanos, afinal.
Nossas Noites é um dos livros mais simples e mais bonitos que li nos últimos meses. É o tipo de obra que indicamos para as pessoas que gostamos, como uma forma de retribuir ou quem sabe tentar explicar a importância de suas presenças em nossas vidas. Recomendo.
NOSSAS NOITES | Kent Haruf
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Sonia Moreira
Quanto: R$ 35,06
Lançamento: Abril, 2017


[Fonte: www.aescotilha.com.br]


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