A ligação entre Guimarães Rosa e José j. Veiga

Guimarães Rosa

Aracy e João Guimarães Rosa se imitaram. Os dois  nasceram em famílias de classe alta do interior e saíram do país na década de 30, por motivos próximos: ocupar vagas no consulado brasileiro da Alemanha, ele de cônsul adjunto, ela de funcionária consular, e para materializar o que transcende, a separação de um amor. Ambos viajaram carregando os filhos: o de Aracy estava em seu colo, as filhas de João estavam em algum recanto de si, apertadas (o que inclui também a Medicina e as Minas Gerais). Os dois eram conquistadores de idiomas, cada um se ocupou de aprender dezenas. E ambosenfim ambos em presença e vínculo, trabalharam juntos durante a Segunda Grande Guerra, pela fuga de dezenas de perseguidos do regime, alterando documentos e conseguindo passaportes. E sim, eram os dois fascinados por gatos.
Já no Rio de Janeiro, na metade da década de 50, Aracy vê que um dos felinos está mal. João sugere doenças, mas não conclui – só sabe coisa de gente ou de bicho grande. Acham melhor ligar para o veterinário, o Dr. Nilo. Aracy disca o número, enquanto João embala um pouco o gato no colo. Não demora muito e ela já volta, com expressão intrigada. “O que foi? É grave assim?”, pergunta ele. Na verdade o Dr. Nilo não poderia atender, adoeceu também. Riu o Guimarães de Grande Sertão em curso: “Quem é que cura o médico doente?” Aracy pareceu não escutar, cuidava para não esquecer o nome que o doutor recomendara em seu lugar, uma tal Dona Clerida.
Do outro lado da cidade, depois de alguns dias e tantos telefonemas, José Jacinto Veiga enfim pergunta à esposa o motivo da procura. Não que desconfiasse, claro. Clerida o olha divertida, com os livros do escritório ao fundo. Eis o quieto rapaz que veio de Goiás e tentou venda de remédios, advocacia, locução de rádios, jornalismo e agora contos sobre sua saudosa Corumbá, ainda não publicados. “É a Dona Aracy e o seu gato doente…” José abre os braços com jeito de espertalhão: “Convidou a gente para almoçar na casa dela”, diz a esposa por fim. “Para agradecer”.
No dia seguinte, estão lá José, Clerida e uma cestinha de apetrechos para fazer visita. Aracy já os espera com uma travessa de comida mineira. Após as conversas iniciais, José fica curioso em relação a um papel sobre a mesa, onde há o nome completo da anfitriã. Não se contém por muito tempo: “Engraçado. Em Londres, li uma livro que me marcou muito, chamado Sagarana. O autor era também um Guimarães Rosa… A senhora por acaso é parente dele?”. Aracy sorri: “Sou mulher.”
Guimarães Rosa manuseou brochuras do marido da amiga de Aracy ao lhe conhecer o cômodo, na visita que retribuía o almoço anterior sem a sua presença. Enquanto as esposas conversavam na sala, José e João se deixavam entender pelas páginas que abriam, até sentirem-se no conforto das palavras enunciadas.
Os dois casais logo estabeleceram um regime interno: em um domingo os Veiga visitavam a casa dos Rosa, e no outro os Rosa visitavam a casa dos Veiga. Exatamente entre dois regimes autoritários no país, um que conheceram e outro que intuíam, esse durou sem fixações. E conversando sobre a ditadura do Estado Novo é que José conheceu o lado faceiro de João. Depois de muito discutirem sobre a era Vargas, o goiano por fim se persuadiu com os argumentos do mineiro e admitiu que o presidente poderia não ser tão ruim: “O quê?”, retrucou Rosa. “Que pontos positivos nada! Getúlio é um safado!”
Em sua vez da alternância das casas, Guimarães Rosa reunia todos no escritório e lia para eles os mais recentes manuscritos. Os ouvintes, qual à beira de uma fogueira, ficavam em silêncio para afastar cobras e onças imaginárias. Numa das histórias, Campo Geral, um menino tem o pé gangrenado e fica prestes a morrer na cama, com a mãe ao lado. Aracy e Clerida tiveram uma compulsão de choro, e a sessão terminou quase em velório. Anunciavam-se ali as novelas que comporiam Corpo de Baile. Eis a razão pela qual Rosa assina o autógrafo do exemplar destinado ao casal Veiga, em 1956, da seguinte forma: “Aos primeiros leitores destas narrativas, meus agradecimentos.”
Em 1958, aos 42 anos, José Jacinto Veiga se exige uma decisão: ou sai de sua condição de eterno escritor amador, pondo a cara a bater, ou vai viver a vida que chama. Espera por um sinal. Provavelmente havia umas três evidências incomuns para confirmar a escolha pela segunda alternativa, mas José não as considera suficientes. Basta uma para a primeira, e ele brada contente. Ao sair a chamada do Prêmio Literário Monteiro Lobato, promovido pela Editora Nacional e a Academia Brasileira de Letras, seção São Paulo, José inscreve uma compilação de contos chamada Os Cavalinhos de Platiplanto.

A boa notícia vem alguns meses depois: é conferido ao estreante o segundo lugar, o que é motivo de comemorações; afinal, os primeiros colocados teriam patrocínio para a publicação das obras. Enfim José Jacinto Veiga seria um autor legítimo, provado, com um fato na mão! Bem, não sigamos com tanta ansiedade. Os organizadores do concurso enviaram um aviso aos classificados de que todo o mercado editorial no país estava em crise. Infelizmente, não haveria recursos para a consumação do prêmio, e eles devem reaver os originais, que contêm ao menos cartas de recomendação.
Guimarães Rosa acreditava em numerologia, tal como superstições. Caso passe por baixo de uma escada, tem que voltar três vezes. Se lhe vêm pressentimentos, não sai, não segue, não sobe. Foi o que lhe impediu por um tempo de assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras: intuiu que, ao fazê-lo, morreria em seguida. De fato, três dias depois, em 1967, ele faleceu do coração. Rosa, contudo, ainda está em 58, saindo do escritório depois de uma tarde de cálculos e consultas aos seus livros de ciências ocultas, para declarar ao amigo: “O seu nome de escritor vai ser José J. Veiga. Põe esse ‘jota’ no meio, vai te fazer bem.”
Alguns dias depois, ao sair da sede referente ao Prêmio Monteiro Lobato, com os originais de Os Cavalinhos de Platiplanto em mãos, Veiga é abordado por um senhor entusiasmado. Ele apresenta-se como um novo editor e está disposto a publicar a obra que o autor carrega. Não há hesitações, mesmo com as condições modestas da Editora Nítida. O escritor agradece à ideia do “jota” e a põe em homenagem, ao amigo, já na diagramação que se faz. Clerida aproveita a ideia e compõe as ilustrações da capa. Pronta a boneca, o livro é colocado na gráfica.
A primeira impressão de Os Cavalinhos de Platiplanto possui uma tiragem bem reduzida, que dá apenas para distribuir em algumas livrarias, por divulgação, e enviar exemplares para concursos literários. A segunda impressão é que completaria e consumaria a publicação, tornando-a evidente. Passa-se, porém, um mês, passa-se outro. José, impaciente, procura o dono da gráfica e o pressiona. A editora havia falido. “Muita sorte me deu esse ‘jota’, hein?”, resmunga Veiga para Guimarães. Algumas semanas depois, Os Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga, é anunciado como vencedor do Prêmio Fábio Prado, o mais importante do Brasil na categoria contos.
Um bloqueio criativo atingiu o escritor goiano por quase dez anos. Segundo ele, o excesso de críticas positivas o intimidaram. As idas e vindas com Clerida e Aracy, no humor quase quieto de espírito campestre, em comum com seu grande amigo, devem ter suavizado pressões. Guimarães já tinha os netos para apresentar e uma prosa cada vez mais a caminho do âmago da linguagem. Veiga não gostava tanto dessa travessia, preferia o vigor do Sertão, e com isto se espezinhavam. Mas talvez tenham entrado em consenso com A Hora dos Ruminantes, novela de vigor, enfim publicada pelo “jota” em 1966. Um ano depois, o mineiro, ao assumir a cadeira da Academia de Letras, cumpre sua profecia e encanta-se.