"Quem já morreu
fica num lugar quentinho, que a gente não vê, cuidando de quem ainda não
morreu. E se você quiser agradar essa pessoa, é só fazer coisas de que ela
gostava. Aí ela fica mais quentinha e cuida ainda melhor da gente",
escreveu Caio Fernando Abreu, referindo-se a Clarice Lispector, em seu livro
"As Frangas", de 1989.
O escritor na Feira do Livro de Frankfurt em 1994, dois anos antes de morrer de aids. |
Por Mônica Bergamo
A frase foi escolhida por Candé Salles, diretor do
documentário "Para Sempre Teu, Caio F.", para saudar um grupo de
amigos do escritor. Morto em 1996 de Aids, o gaúcho deve ter se sentido
quentinho nos papos e memórias dos convidados da sessão privê realizada em São
Paulo, antes da première do filme hoje no Festival do Rio.
Paula Dip, roteirista do
longa que retrata a vida e a obra do também jornalista e dramaturgo que virou
pop nas redes sociais, abriu sua casa na Vila Madalena para um jantar em
homenagem à memória de Caio. Naquele 12 de setembro, ele estaria completando 66
anos. Estavam lá os escritores Maria Adelaide Amaral e Marcelo Rubens Paiva e o
cineasta Guilherme de Almeida Prado.
"Somos todos amigos há 40 anos", diz Maria Adelaide,
referindo-se também ao editor Pedro Paulo de Sena Madureira, à cantora Cida
Moreira e à atriz Grace Gianoukas. "O filme honra o Caio no sentido humano
e literário. Ele teria gostado do clima desta noite", disse a dramaturga à
repórter Eliane
Trindade.
Todos tinham boas histórias para contar do aniversariante e
de seus intensos 48 anos de vida. Grace, que dividiu casa com Caio quando
chegou a São Paulo nos anos 1980, lembrava dos neologismos criados pelo
conterrâneo. "Saia justa, mala", enumera ela, para se referir a
constrangimento e gente chata, respectivamente.
Fatos pitorescos e lembranças surgiam dentro e fora da tela no
centro da sala, onde eram projetadas imagens desde a infância de Caio em
Santiago (RS), passando pela temporada hippie na Europa à despedida da vida em
uma praia no Sul. Várias convidados estão entre os 60 entrevistados por Salles.
O documentário mescla ainda trechos da obra de Caio interpretados por atores
como Thiago Lacerda e Cauã Reymond.
"Caio é um clássico", elogia Pedro Paulo, para
explicar o sucesso póstumo do autor de "Morangos Mofados" (1982), que
virou "pop star das letras" nas redes sociais. "Ele é Van
Gogh", resume Grace. "Vivia duro, já tinha estourado, mas o fenômeno
de entendimento popular de sua obra foi acontecer depois."
Com suas frases sobre a vida, a solidão, o amor e suas
implicações, Caio tem páginas e páginas criadas na internet por fãs. A dimensão
do do seu alcance pode ser medida no Google: são 6,2 milhões de resultados para
"caio fernando abreu trechos". "Ele virou cult na internet,
assim como Clarice Lispector, que era sua musa", diz Paula, autora do
livro que serviu de guia para o documentário.
A anfitriã emociona os convivas com suas palavras ao fim
do filme: "Caio, você sempre soube traduzir o que sentíamos. Vão se passar
muitos séculos e você vai continuar vivo no coração de quem chora de medo e de
amor".
A noite também foi regada a risadas. "Ele era um
cara bonito, se eu fosse gay teria namorado o Caio", brinca Rubens Paiva,
ao recordar noitadas turbinadas a uísque e outros aditivos.
Surge um Caio pródigo em humor. Até no leito de morte,
internado no Emílio Ribas, após ser diagnosticado com HIV. Recebia amigos com
frases hilárias. "Fiz a Filadélfia", era uma delas, brincando com o
filme de 1993, com Tom Hanks, sobre a luta de um soropositivo nos primórdios da
doença. Grace conta ter sido recepcionada no hospital por uma performance de
Caio, com trilha de As Frenéticas, adaptada à situação. "Por isso sou
positiva", cantava ele, em vez de "sou vingativa".
Leveza que contrasta com o autor que mergulhou nas
profundezas em obras como "Os Dragões Não Conhecem o Paraíso".
"Caio, hoje, seria definido como bipolar", diz Cida Moreira, que era
vizinha dele nos Jardins. A cantora se recorda de uma frase do amigo
soropositivo: "Eu que sempre fui suicida, hoje, que sei que vou morrer,
amo a vida".
Caio enfrentou a doença em público, assim como os cantores
Cazuza e Renato Russo, também vítimas da Aids. Usou sua pena para desmitificar
a doença. "Não me venham com olhar piedoso, detesto ser tratado como
doente terminal, quero respeito para mim e para todos que vivem com o vírus HIV
nesse país. Quero banalizar a Aids, falar muito dela."
E assim o fez, despedindo-se da vida com dignidade e
delicadeza. Como diz Marisa Orth no filme: "Caio era chique mesmo
bêbado". A frase desperta risos gerais na turma reunida para brindar o
nascimento do "escafandrista das palavras", numa fria noite de
setembro.
[Foto: Bel Pedrosa - fonte: www.folha.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário