segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Análise: Mudanças vedam mercado a 99% dos cubanos

Por LEONARDO PADURA

Em Cuba, um profissional de máxima qualificação consegue ganhar no máximo mil pesos por mês.

A quantia equivale a 40 pesos conversíveis, o que por sua vez significa US$ 45. Em mais de uma ocasião, o próprio governo cubano admitiu que os salários médios pagos pelo Estado resultam em dinheiro insuficiente para que o cidadão possa atender às suas necessidades básicas.

No processo de reforma empreendido por Cuba nos últimos anos, considerado uma atualização do modelo econômico socialista da ilha, as autoridades buscaram eliminar gratificações, bem como obstáculos e conceitos burocráticos que impediam um melhor desenvolvimento da sociedade e da economia.

Entre as mudanças introduzidas estão a revitalização do trabalho independente, a aprovação de uma nova lei tributária com altas alíquotas de impostos e a criação de cooperativas agrícolas e de serviços.

Também se abriram possibilidades antes vedadas, como a permissão para que cubanos se hospedem em hotéis para turistas, comprem linhas de telefonia móvel, adquiram equipamentos de computação ou frequentem salas de navegação com acesso à internet –desde que paguem por todos esses serviços em moeda forte.

(Uma hora de conexão com a internet custa cerca de cem pesos cubanos, ante o salário máximo de mil pesos mencionado acima para um profissional capacitado.)
Além disso, agora a maioria dos cubanos pode viajar livremente ao exterior (as passagens são pagas em moeda forte) e podem vender e comprar casas de sua propriedade.

Recentemente foram aplicadas outras medidas, como a de proibir salas privadas de exibição de filmes 3D e a venda de artigos têxteis e industriais importados, duas modalidades de trabalho independente que haviam florescido.

Nos últimos dias, também foi anunciada a venda livre, por parte do Estado, de automóveis novos e de segunda mão, prática que havia desaparecido do país há mais de 50 anos e que, com muitas restrições, só beneficiava determinados setores da população (diplomatas, artistas, esportistas, colaboradores retornados do exterior).

Poucas medidas, entre as introduzidas até agora, provocaram mais estupor do que essa, pois os automóveis novos (Peugeots 2013) custam entre US$ 200 mil e US$ 250 mil, enquanto os de segunda mão não custam menos de US$ 20 mil a US$ 30 mil para automóveis de fabricação chinesa com diversos anos de rodagem em frotas de locação.

No texto que acompanhava a aprovação da medida, afirma-se que "a baixa disponibilidade de automóveis, a restrição dessa facilidade a um grupo reduzido de categorias ocupacionais seletas e a existência de outro mercado que os vende a preços muitas vezes maiores que os da empresa comercializadora estabelecida geraram inconformidade, insatisfação e, em diversos casos, levaram esse mecanismo, além de tudo burocrático, a se converter em fonte de especulação e enriquecimento".

Para evitar esses males, a solução estatal foi elevar os preços à estratosfera... e liberar a venda de alguns automóveis que, graças aos lucros a que as autoridades aspiram, ajudarão a criar um fundo para financiar a melhora do transporte urbano.

Em curto prazo, uma semana depois da liberação desse mercado, parece que não houve muitos carros vendidos.

Consideremos: se um profissional liberal cubano ganha US$ 45 ao mês com seu trabalho, quantos anos de trabalho serão necessários para adquirir não um automóvel de US$ 250 mil, mas um carro chinês de US$ 25 mil?

Para quem está aberto um mercado vedado a 99% dos cubanos e a qualquer ser medianamente racional? Essa medida abre a possibilidade de compra de automóveis aos cubanos ou na verdade a fecha de maneira ostensiva?

A medida é, na verdade, uma reforma ou seria um ato de contrarreforma?

LEONARDO PADURA FUENTES, 58, é escritor e jornalista de Havana, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura 2012 de Cuba

Tradução de PAULO MIGLIACCI 

[Fonte: www.folha.com.br]

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