Nossa vida social não está paralisada por estarmos tendo que obedecer a regras de isolamento social e quarentena – nesses momentos de aparente paralisia, as coisas estão mudando radicalmente. A rejeição ao lockdown é na verdade uma rejeição à mudança.
Escrito por Slavoj Žiže
O simples que é difícil de fazer
Os marxistas tradicionais costumavam estabelecer uma distinção entre o comunismo propriamente dito e o socialismo, que seria sua etapa inicial, inferior (na qual o dinheiro e o Estado ainda existiriam, os trabalhadores ainda recebem salários e assim por diante). Na União Soviética houve um debate em 1960 sobre onde eles se encontrariam nesse quesito, e a conclusão foi que embora não estivessem ainda no comunismo pleno, tampouco se encontravam na sua etapa inferior (o socialismo). O resultado foi a introdução de uma distinção adicional entre uma fase inferior e superior do próprio socialismo… Ora, será que algo semelhante não está ocorrendo agora com a epidemia da covid-19? Até cerca de um mês atrás, nossa mídia estava recheada de alertas sobre uma segunda e muito mais potente onda da epidemia que ocorreria no outono e no inverno.
Hoje, com novos picos em toda parte e números de infecção despontando mais uma vez, o que se diz é que não se trata ainda da segunda onda, mas apenas de um agravamento da primeira onda, que persiste. Essa conclusão classificatória só confirma que a situação da covid-19 está ficando grave, com o número de casos explodindo em todo o mundo novamente. Portanto passou da hora de levar a sério verdades simples tais como aquela recentemente anunciada pelo diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus: “A maior ameaça diante da qual nos deparamos agora não é o vírus em si, é a falta de liderança e solidariedade a nível global e nacional. Não conseguiremos derrotar essa pandemia se permanecermos divididos enquanto mundo. A pandemia da covid-19 é um teste de solidariedade e liderança globais. O vírus floresce com a divisão, mas é aplacado quando nos unimos.” Levar essa verdade a sério significa que devemos considerar não apenas as divisões internacionais como também as divisões de classe no interior de cada país.
“O coronavírus meramente expôs a pandemia pré-existente de pobreza. A covid-19 chegou em um mundo no qual a pobreza, a desigualdade extrema e o desprezo diante da vida humana estão alastrando-se, e no qual políticas econômicas e estruturas jurídicas são concebidas a fim de gerar e sustentar riqueza para os mais poderosos, não para erradicar a pobreza.”
Philip Alston, “Covid-19 has revealed a pre-existing pandemic of poverty that benefits the rich”, The Guardian, 11 jul. 2020.
Conclusão: é impossível conter a pandemia viral sem atacar também a pandemia da pobreza. Como? A princípio, não tem muito mistério: dispomos dos meios necessários para reorganizar adequadamente o sistema de saúde e assim por diante. No entanto, para citar a frase final do “Elogio ao comunismo”, de Brecht, presente na sua peça A mãe: “Er ist das Einfache, das schwer zu machen ist [É o simples, que é difícil de fazer]”. Há muitos obstáculos que fazem com que esse simples seja tão difícil de realizar (sobretudo a ordem capitalista global), mas quero aqui focar em um obstáculo ideológico – ideológico no sentido das posturas, preconceitos e fantasias semiconscientes, mesmo inconscientes, que regulam as nossas vidas também (e especialmente) em tempos de crise. Ou seja, trata-se de pensar uma teoria psicanalítica da ideologia.
Nos meus livros, muitas vezes me refiro a uma série de filmes de Louis Buñuel construídos em torno do tema central recorrente da “impossibilidade não explicável da realização de um simples desejo” – as palavras são do próprio Buñuel. Em L’age d’or, o casal quer consumar seu amor, mas é repetidamente impedido de o fazer por conta de algum acidente besta. O herói do filme Ensaio de um crime quer realizar um simples assassinato, mas todas as suas tentativas fracassam. Ao final de uma noite de festa, um grupo de pessoas ricas não consegue atravessar a soleira para deixar a casa em O anjo exterminador. Em O discreto charme da burguesia, dois casais querem jantar juntos, mas complicações inesperadas sempre impedem a realização desse simples desejo. E, finalmente, em Aquele obscuro objeto do desejo, temos o paradoxo de uma mulher que, através de uma série de truques, adia repetidamente o momento final de encontro com seu amante… Será que não estaríamos testemunhando algo muito semelhante com a reação à atual pandemia? Todos nós de uma maneira ou de outra sabemos o que precisa ser feito, mas as estranhezas do destino vão impedindo-nos de fazê-lo.
Agora que as infecções de covid-19 estão aumentando e as pessoas voltam a se preocupar, as novas medidas restritivas são anunciadas mas sempre junto com uma ressalva explícita ou ao menos implícita dizendo: “mas não haverá retorno a um lockdown total, a vida pública continuará…” Essa ressalva ecoa as queixas de muitas pessoas: “Eu não aguento mais [um lockdown total]. Quero minha vida normal de volta!” Por que? Terá sido o lockdown uma paralisia desprovida de dialética (para inverter o famoso tema benjaminiano da “dialética paralisada” [Dialektik im Stillstand])? Nossa vida social não está paralisada por estarmos tendo que obedecer a regras de isolamento social e quarentena – em tais momentos de (ou do que pode parecer uma) paralisia as coisas estão mudando radicalmente. A rejeição ao lockdown é na verdade uma rejeição à mudança.
Ignorar isso significa nada menos que um tipo de psicose coletiva. Escuto nas queixas contra o lockdown uma confirmação inesperada da afirmação de Jacques Lacan de que a normalidade é uma versão de psicose. Exigir um retorno à normalidade hoje implica um fechamento psicótico ao real do vírus – seguimos agindo como se a infecção na realidade não ocorresse. Basta reparar nos discursos mais recentes de Donald Trump: embora ele tenha consciência do verdadeiro escopo da epidemia, ele fala e age como se não soubesse de suas implicações, acusando ferozmente os “esquerdistas fascistas” de serem a principal ameaça aos EUA hoje, e por aí vai. Mas Trump aqui é muito menos uma exceção do que pode parecer – lemos regularmente na mídia e na imprensa notícias que soam algo como: “Apesar dos novos picos de infecção, a abertura continua…” De maneira insuperavelmente irônica, o retorno à normalidade torna-se assim o gesto psicótico supremo, o emblema da loucura coletiva.
Isso, é claro, não resume a verdade toda a respeito do impacto psíquico da epidemia. Em uma época de crise, o grande Outro (a ordem simbólica substancial que regula as nossas interações) está simultaneamente desintegrando, demonstra sua ineficácia e fortalece-se (bombardeia-nos com ordens precisas a respeito de como agir, o que fazer e o que não fazer). Isto é, o fechamento psicótico não é a única nem mesmo a mais predominante reação à epidemia. Há também a postura obsessiva.1 Muitos de nós gozamos com os rituais protetivos contra o perigo da infecção. Lavamos compulsivamente as nossas mãos, evitamos tocar nos outros e mesmo tocar a nós mesmos, esterilizarmos todas as superfícies de nossos apartamentos etc. É assim que agem os obsessivos: uma vez que o gozo objetal se encontra interditado, eles realizam uma guinada reflexiva e passam a gozar com as próprias medidas que mantêm o gozo objetal a uma distância segura.
Aqui, Jacqueline Rose levantou uma objeção crítica contra mim (durante um debate na Birkbeck Summer School): “Como você concilia a liberação de obscenidade, mesmo psicose, no espaço público com a sua explicação dos elementos progressistas do momento? Pode a ética derrotar a obscenidade? Temo que o conjunto da psicanálise sugere o contrário.” As coisas, a meu ver, são mais complexas. A obscenidade perversa não é o momento no qual o inconsciente irrompe abertamente de maneira desprovida de qualquer regulação ética a constrangê-lo. O próprio Freud chegou a escrever que na perversão, o inconsciente é o mais difícil de acessar – motivo pelo qual é quase impossível psicanalisar os perversos: primeiro eles precisam ser histericizados, é preciso que suas certezas sejam enfraquecidas pelo surgimento de questionamentos histéricos.
Mas penso que o que estamos testemunhando agora, com a epidemia arrastando-se, é justamente uma gradual histericização daqueles que possuíam uma posição perversa ou mesmo psicótica. Trump e os outros novos populistas de direita estão surtando internamente, ficando nervosos, suas reações são cada vez mais inconsistentes, autocontraditórias, assombradas por uma questão. Voltando a Rose, penso que a própria obscenidade já depende de certa ética, ela se enquadra numa postura que não pode ser designada senão como ética: aqueles que agem de maneira obscena querem chocar as pessoas com seus atos e assim despertá-los de suas ilusões cotidianas. A forma de superar essa ética da obscenidade é trazer à tona suas inconsistências: aqueles que agem de maneira obscena possuem seus próprios tabus, eles nunca são tão radicais quanto pensam ser. Não há nenhum político atualmente mais constrangido pela repressão de seu inconsciente do que Trump, precisamente quando ele pretende agir e falar de maneira sincera e aberta, dizendo o que lhe der na telha.
O pessimismo de Rose se justifica, mas num nível ligeiramente diferente. Hegel não disse simplesmente que não se aprende nada da história, ele disse que única coisa que aprendemos com a história é que não há nada a se aprender com ela. É claro que “aprendemos com a história” no sentido de reagir às catástrofes do passado, de incluí-las nas narrativas de um possível futuro melhor. Digamos, depois do horror da Primeira Guerra Mundial, as pessoas ficaram completamente horrorizadas e formaram a Liga das Nações a fim de evitar futuras guerras – mas o que veio em seguida foi a Segunda Guerra Mundial. Aqui sou um pessimista hegeliano: cada trabalho de luto, cada simbolização de uma catástrofe deixa algo de fora e assim abre um caminho para uma nova catástrofe. E não adianta ter consciência do perigo que nos aguarda. Basta lembrar do mito de Édipo: seus pais sabiam o que ocorreria, e a catástrofe se realizou porque a tentaram evitar… sem a profecia que comunicou a eles o que aconteceria, a catástrofe não se teria realizado.
Só penso que nossos atos nunca são autotransparentes, nunca sabemos o que estamos fazendo, quais serão os efeitos do que estamos fazendo. Hegel tinha plena consciência disso e aquilo que ele denominava “reconciliação” não é um triunfo da razão mas a aceitação da dimensão trágica da nossa atividade: precisamos humildemente aceitar as consequências de nossos atos mesmo que não gostaríamos que isso ocorresse. Os comunistas russos não queriam o terror stalinista, isso não fazia parte dos planos deles, mas foi o que ocorreu, e eles são de certa maneira responsáveis por ele. Será que o mesmo se dará com a epidemia do corona? E se algumas das medidas que estamos implementando para combatê-la ensejarem novas catástrofes?
É assim que devemos aplicar o idealismo de Hegel à realidade da covid-19: aqui, também, devemos ter em mente a afirmação de Lacan de que não há realidade desprovida de suporte fantasmático. As fantasias fornecem a moldura daquilo que experimentamos como realidade – a epidemia da covid-19 como fato da nossa realidade social é portanto também uma mistura do real e das fantasias: todo o arcabouço a partir do qual nós a percebemos e reagimos a à pandemia é sustentado por diferentes fantasias (sobre a natureza do próprio vírus, sobre as causas de seus impacto social e assim por diante). O próprio fato de que a covid-19 quase parou o mundo em um momento no qual muito mais pessoas vinham morrendo de poluição, fome etc, já fornece um claro indício dessa dimensão fantasmática. Temos a tendência de esquecer que há pessoas – refugiados, pessoas presas em meio a uma guerra civil – para as quais a epidemia da covid-19 representa uma preocupação menor, desprezível.
Isso significa que não há esperança? Etienne Balibar escreveu o seguinte contra mim (também no contexto de um debate na Birkbeck Summer School): “Soa-me um pouco infantil a ideia de que só porque a crise é uma ‘grande’ crise (concordo), todas as ‘lutas’ estão potencialmente fundindo-se em um único movimento revolucionário (contanto que gritemos ‘Uni-vos! Uni-vos!’ de maneira suficientemente alta)… ainda permanecem alguns obstáculos! As pessoas precisam primeiro sobreviver…” Mas penso que algo como uma nova forma de comunismo terá de surgir precisamente se quisermos sobreviver!
Se as últimas semanas demonstraram alguma coisa é que o capitalismo global não tem condições de conter a crise da covid-19. Por que não? Como observou Todd MacGowan, o capitalismo é, em seu âmago, sacrificial – em vez de imediatamente consumir o lucro, devemos reinvesti-lo, de modo que a satisfação plena é eternamente adiada.2 Em uma das últimas cenas da ópera de Mozart, Don Giovanni canta de maneira triunfal: “Giacché spendo i miei danari, io mi voglio divertir [Já que estou gastando meu dinheiro, quero divertir-me]” É difícil imaginar um lema mais anticapitalista – um capitalista não gasta seu dinheiro para se divertir, mas para ganhar mais dinheiro. No entanto, esse sacrifício não é experimentado como tal, ele é ocultado: sacrificamos-nos agora para lucrar lá na frente.
Com a epidemia da covid-19, a verdade sacrificial do capitalismo veio à tona. De que forma? Somos abertamente solicitados a sacrificar (parte das) nossas vidas agora a fim de manter a economia rodando. Refiro-me aqui à maneira pela qual alguns dos seguidores de Trump, por exemplo, diretamente exigiram que pessoas maiores de 60 anos de idade deveriam aceitar morrer a fim de sustentar o “american way of life” capitalista… É claro, os trabalhadores que exercem profissões perigosas (mineradores, metalúrgicos, caçadores de baleias) já vêm arriscando suas vidas há séculos – isso sem falar nos horrores da colonização, em que quase metade da população indígena foi erradicada – mas agora o riso está direta e explicitamente formulado, e não é exclusivo aos pobres. Pode o capitalismo sobreviver a essa mudança? Penso que não: ela sobrepuja a lógica do gozo eternamente adiado que permite com que o capitalismo funcione.
O obverso desse ímpeto capitalista incessante de produzir a cada instante novos objetos são as crescentes pilhas de restos inúteis, montanhas de carros usados, sucata eletrônica e assim por diante, tal como o famoso “cemitério de aviões” no deserto de Mojave na Califórnia. Nessas pilhas cada vez maiores de “coisas” inertes, disfuncionais, que não podem senão nos provocar espanto com sua presença inútil, é possível, por assim dizer, identificar o ímpeto capitalista em estado repouso. E será que algo dessa natureza não ocorreu com todos nós quando, com a quarentena, nossa vida social se paralisou? Vimos objetos que usávamos todo dia – lojas, lanchonetes, ônibus, trens e até aviões – simplesmente em estado de repouso, fechados, desprovidos de suas funções. Não poderíamos dizer que isso foi uma espécie de epoché imposta sobre nós? Tais momentos devem nos fazer pensar: será que vale mesmo a pena voltar ao pleno funcionamento desse mesmo sistema?
O mais difícil ainda está por vir
A verdadeira provação, contudo, não é tanto o lockdown e o isolamento, ela se dará quando nossas sociedades começarem a movimentar-se novamente. Em uma coluna anterior aqui no Blog da Boitempo, comparei o efeito da epidemia de covid-19 sobre a ordem capitalista à “técnica dos cinco pontos que explodem o coração” da cena final do filme Kill Bill: volume 2, de Quentin Tarantino. A técnica consiste em uma combinação de cinco golpes desferidos com a ponta dos dedos em cinco pontos de pressão diferentes no corpo do oponente. Depois de sofrer o golpe, a vítima ainda pode seguir viva contanto que não se mova. Assim que virar as costas e completar cinco passos, contudo, seu coração explode e ela desaba… Ora, não foi assim que a epidemia da covid afetou o capitalismo global? É relativamente fácil manter o lockdown e o isolamento, temos consciência de que se trata duma medida temporária; algo como dar uma pausa. Os problemas realmente vêm à tona quando nos vemos diante do imperativo de inventar uma nova forma de vida, uma vez que fica claro que não há mais possibilidade de retorno à antiga. Em outras palavras, os tempos realmente difíceis estão chegando agora.
Em um ensaio ainda inédito intitulado “Present Tense 2020”, W. J. T. Mitchell lê a temporalidade da epidemia através das lentes da tríade da antiguidade grega composta por Chronós, Aion e Kairós. Chronós personifica o tempo linear implacável que conduz inexoravelmente à morte de todas as coisas vivas. Aion é o deus do tempo circular, das estações, do ciclo do zodíaco, da imagem da serpente devorando a própria cauda, do eterno retorno. Kairós possui um aspecto duplo de ameaça e promessa – na teologia cristã, trata-se do momento da decisão fatídica, o momento no qual “a novidade vem ao mundo”, assim como no nascimento de Cristo.
A epidemia é em larga medida lida através das lentes de Chronós ou Aion: como um acontecimento no curso linear das coisas, como uma temporada ruim, um ponto baixo que cedo ou tarde será revertido. O que eu espero é que a epidemia siga a lógica de Kairós: uma catástrofe que nos impelirá a encontrar um novo começo. Para nossos liberais, a aparição inesperada de Trump foi um momento de Kairós, algo novo que estilhaçou os fundamentos de nossa ordem estabelecida. Para mim, Trump é apenas um sintoma do que já estava errado em nossas sociedades, e ainda estamos para ver o novo surgir.
Se não inventarmos um novo modo de vida social, não será apenas um pouquinho pior, mas muito pior. Mais uma vez, minha hipótese é de que a epidemia da covid-19 anuncia uma nova época na qual teremos que repensar tudo, inclusive o significado básico do que é ser humano, e nossas ações devem ir de encontro aos nossos pensamentos. Talvez hoje devamos inverter a décima primeira tese de Marx sobre Feuerbach: no século vinte, tentamos mudar o mundo de maneira rápida demais, e agora chegou a hora de interpretá-lo duma nova maneira.
Notas1 Devo essa sacada a Matthew Flisfeder, em uma comunicação pessoal.2 Todd McGowan, comunicação pessoal.
[Fonte: blogdaboitempo.com.br]
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