Conhecido por ser tradutor do grego, até recebeu o Prémio Pessoa por essa razão, Frederico Lourenço publicou uma Nova Gramática do Latim. Língua que devia, diz, ser ensinada cedo na escola de "forma lúdica mas progressiva".
Por João Céu e Silva
Chegou ontem às livrarias a Nova Gramática do Latim de autoria de Frederico Lourenço, tradutor mais conhecido pela versão portuguesa a partir do grego de Homero e da Bíblia (Septuaginta). São 512 páginas que o autor define como "diferente das anteriores publicadas em Portugal" e que se destinam principalmente a "quem trabalha em áreas em que o conhecimento do latim é imprescindível": arqueologia, história antiga e medieval, filosofia, teologia e linguística portuguesa. E Frederico Lourenço admira-se que "haja entre nós investigadores e professores dessas áreas que sabem pouco ou nenhum latim".
O lançamento desta gramática de latim surpreende pois o professor universitário está também envolvido no grande projeto da tradução desde o grego da Bíblia em seis volumes. Lourenço explica nesta entrevista como encontra tempo para escrever/traduzir tantas centenas de páginas: "Só consigo fazer os trabalhos que faço porque abdico de muitas outras coisas."
A propósito do lançamento desta Nova Gramática do Latim, o autor tornou pública uma parte da sua história com esta língua: "Apesar de me ter tornado conhecido como professor e tradutor de grego, houve vários períodos da minha vida em que me senti, acima de tudo, latinista. Olhando para trás, não me é difícil perceber porquê. Comecei a aprender grego com 21 anos, enquanto o latim foi quando tinha 10. Faz toda a diferença." Considera que "hoje é praticamente impensável uma criança começar a aprender latim com essa idade, mas em 1973, no colégio inglês que frequentava - o excêntrico St. George's School em Cascais -, era quando se começava a aprender latim. (...) Mas gostei, tanto que nesse Natal o meu pai me ofereceu a obra completa de Vergílio".
No entanto, esclarece, não foi nessa idade que leu o Vergílio da Loeb em dois volumes: "Só quando era estudante da Faculdade de Letras de Lisboa." Revela que o percurso enquanto estudante de latim "teve os seus ziguezagues", e a principal razão foi ter-se "apaixonado pela novidade que era aprender grego". Só no terceiro ano é que o latim volta a ser importante, devido a duas professoras entusiastas da língua. Quando chega a altura de optar por esta língua ou pelo grego para o mestrado e o doutoramento, acabou por escolher a primeira e não a que o tornou mais conhecido: "No primeiro ano do mestrado era 100% latinista."
Como o seu amor pelo grego "era mais forte", revela, Frederico Lourenço foi-se afastando do ensino do latim. Depois, refere, "dei-me conta de que o que me interessava era 'mexer' com o latim propriamente dito: não me interessava tanto traduzir latim, mas ajudar outros a entender latim". Esta Nova Gramática do Latim é resultado dessa intenção.
Há uma questão incontornável para quem acompanha o seu trabalho. Como encontra tempo para escrever tantas centenas de páginas?
O tempo é uma conquista consciente da minha parte. Só consigo fazer os trabalhos que faço porque abdico de muitas outras coisas. Não é só abdicar de atividades de lazer, é abdicar também de todos os convites que recebo para conferências, para deslocações internacionais e para júris universitários. Tomei a opção de fazer aquilo que considero o "meu" trabalho, não só porque o considero mais importante do que outras atividades a que me poderia dedicar, mas também porque me dá gosto fazê-lo.
Ainda vai na oitava linha e critica as "metodologias do tempo da ditadura de Salazar". O governante foi um "mal" para o latim?
Foi, embora de forma paradoxal, na medida em que as línguas clássicas beneficiaram de bastante protecionismo no tempo do Estado Novo. A fatura desse protecionismo foi paga a seguir ao 25 de abril de 1974, com a sanha com que se procedeu à desmontagem da legislação e dos planos de estudos que impunham o latim e o grego como obrigatórios. Para a esquerda académica que pôde soltar a voz depois da Revolução, o latim e o grego representavam algo de retrógrado. Também é preciso pensar quem eram as grandes figuras dos Estudos Clássicos antes do 25 de abril (em Coimbra, Costa Ramalho e Rocha Pereira; em Lisboa, Ureña Prieto e Rosado Fernandes). Eram figuras conservadoras, que chegaram sem obstáculos políticos ao topo da carreira antes da Revolução.
No mesmo Preambulum considera que são muitas as pessoas que gostariam de saber esta língua. Essa é mesma a realidade nacional?
Refiro-me a pessoas que, na vida universitária, trabalham em áreas em que o conhecimento do latim é objetivamente imprescindível: arqueologia, história antiga e medieval, filosofia, teologia, linguística portuguesa. Nunca deixa de me surpreender que haja entre nós investigadores e professores dessas áreas que sabem pouco ou nenhum latim.
Pretende com esta Nova Gramática "sistematizar de forma desempoeirada" uma língua morta?
A etiqueta de "língua morta" é muito discutível. Mortas estão as línguas que eram faladas no que é hoje território português antes de os romanos terem conquistado a Península Ibérica. O latim trazido pelos romanos continua vivo, visto que o português, o espanhol, o italiano e o francês (para dar só estes quatro exemplos) constituem, na realidade, formas de latim faladas hoje por quase mil milhões de pessoas. Não falamos, atualmente, o latim do tempo de Cícero, mas sim o resultado da evolução dessa língua. Uma das intenções da minha Gramática é chamar a atenção para o elo inquebrantável entre o latim e o português.
Em que difere esta gramática daquelas que existem disponíveis?
É diferente das anteriores publicadas em Portugal porque aposta na explicação histórica dos fenómenos morfológicos, ao mesmo tempo que pretende ser mais sintética no que toca à explicação da sintaxe. Tentei explicar o porquê da complexidade morfológica dos substantivos, dos verbos e dos pronomes, com base na história da língua latina desde as inscrições republicanas mais antigas até ao latim da época cristã. Quanto à sintaxe, evitei amontoar informação confusa e redundante, optando em vez disso por oferecer uma explicação clara e sintética do funcionamento real das frases em latim.
Considera necessário aos falantes de línguas clássicas o domínio de um grande vocabulário. Essa não é também uma dificuldade nas que se falam atualmente?
Sim, a aquisição de vocabulário é a tarefa mais importante na aprendizagem de uma língua, seja ela clássica ou moderna, depois de entendidas as estruturas básicas da morfologia e da sintaxe. Esse esforço consciente de aprendizagem do vocabulário do latim é ainda mais importante no contexto atual, porque as pessoas começam, na maior parte dos casos, a aprender latim já adultas, numa fase do desenvolvimento do cérebro humano em que já não se consegue aprender vocabulário quase por osmose, como é possível aos 10 anos. Por isso sou apologista de que o latim deve ser ensinado na escola, de forma lúdica mas progressiva, a partir dos 10 anos.
Acredita que daqui a algumas gerações esta Nova Gramática tenha produzido resultados?
Tenho esperança de que possa dar a muita gente uma porta de entrada para o estudo das línguas clássicas. Não é só uma gramática, é também um livro acerca da língua latina, da sua história e da sua beleza. É um livro de pretende mostrar às pessoas porque é que o latim é importante na formação não só escolar e universitária, mas cultural também.
Esta Gramática tem direito a palavrões. Só assim ficaria completa?
A minha intenção é oferecer uma imagem realista do latim, dos seus diferentes níveis de língua. O espaço dado a frases contendo palavrões é ínfimo, mas entendi que esse registo de linguagem devia estar presente, para mostrar que o latim é uma língua em que tudo se pode exprimir, desde os palavrões mais crus até aos pensamentos mais sublimes. É a língua de Vergílio e da Vulgata, sim; mas é também a língua de grafitos obscenos escritos nas paredes por pessoas que davam os mais delirantes erros de ortografia.
Comenta as subtilezas de Tácito e como esse estilo se torna "quase indigente" ao ser traduzido. É o que justifica a aprendizagem de uma língua como o latim?
Um dos grandes argumentos para se aprender latim é que o verdadeiro sentido dos grandes autores latinos é indissociável das palavras latinas por eles usadas. Pessoalmente, sempre me dei conta de uma certa frustração ao tentar traduzir literatura latina para português, porque parece que toda a beleza literária do original se evapora no processo de tradução.
Porque deixou o latim de ser falado como língua materna e não se perdeu?
Houve vários fatores que explicam a sobrevivência do latim. O principal foi o facto de o latim ter sido, até ao século XX, a língua da Igreja Católica. Nunca é de mais sublinhar a importância do contributo da Igreja para a sobrevivência do latim. É preciso não esquecer que durante séculos a liturgia foi em latim e a Bíblia só podia ser lida em latim. Depois, a qualidade e a quantidade de textos em latim tanto da Antiguidade pagã como do período cristão fizeram do conhecimento do latim algo de incontornável. Hoje é possível a quem não saiba latim ler uma parte significativa destes textos em tradução, mas em séculos anteriores isso não era possível. Quem quisesse ler os mais de 200 volumes da Patrologia Latina tinha mesmo de saber latim.
Que benefícios teve a literatura portuguesa do latim?
De forma direta, há a mencionar toda a literatura escrita em latim por autores portugueses entre os séculos XVI e XVIII. Existe a obra do Padre António Vieira escrita em português, mas há também a obra que ele escreveu em latim. Existe poesia, teatro e escrita ensaística em latim, produzida pelos nossos humanistas, em cuja divulgação os meus colegas da Faculdade de Letras de Coimbra se têm empenhado, há várias gerações. De forma indireta, o latim e a sua grande poesia estão presentes em quase cada verso de Os Lusíadas, poema cuja textura linguística mostra a competência de Camões como latinista.
Refere a questão das várias pronúncias. Como se encontrou aquela que se ensina, por ser a que se pensa ser mais aproximada?
A pronúncia que atualmente se privilegia nas grandes universidades internacionais é a pronúncia que se pensa ser a mais aproximada da que seria natural entre as classes cultas entre o final da República e o início do Império. As bases em que essa pronúncia assenta são explicadas por mim na Gramática. O importante é seguir uma opção coerente. Não me parece coerente lermos em voz alta a poesia de Vergílio usando a pronúncia eclesiástica do latim, pois isso é anacrónico. Mas também é legítimo perguntarmos se é coerente lermos textos mais tardios com a pronúncia do tempo de Júlio César e de Augusto.
A Nova Gramática do Grego está na calha?
Na calha, está. Não posso é precisar ao certo quando terei terminado esse trabalho. Mas é algo que farei com a maior paixão, se bem que me pareça mais prioritário ainda compilar um bom dicionário grego-português.
Frederico Lourenço com um dos volumes da Bíblia. Foto: Paulo Spranger/Global Imagens
A tradução da Bíblia desde o grego é de uma dimensão gigantesca. Esta Nova Gramática foi um intervalo para ganhar forças para ir até ao fim?
É positivo dar por vezes um tempo ao trabalho de tradução da Bíblia, mas a verdade é que eu já tinha há muito tempo o desejo de fazer qualquer coisa na área do latim. Tenho uma grande paixão por linguística (seja ela grega ou latina) e a feitura desta Gramática ajudou a satisfazer a minha necessidade de me dedicar a um trabalho mais no campo da linguística.
Até que ponto a sua faceta de ficcionista reclama da falta de tempo?
Não publico ficção desde 2005, portanto nem sei se essa faceta ainda existe dentro de mim. Se existe, anda muito calada já vai para quinze anos!
Tem convivido bem com algumas críticas feitas à tradução da Bíblia ou são próprias dos intelectuais do país?
Convivo bem com todas as críticas, nem outra coisa faria sentido tratando-se da Bíblia, que é justamente o livro que nunca permitirá uma tradução consensual. Vou fazendo o trabalho que me propus realizar segundo os critérios que me parecem mais adequados às minhas competências e também àquilo que me parecia estar em falta no panorama nacional de traduções da Bíblia: faltava uma tradução independente, feita com isenção académica e sem intuito apologético. Mas tenho plena consciência de que não posso querer mais do que apenas dar um contributo para a tradução da Bíblia.
É citado no livro de Frédéric Martel sobre a homossexualidade no Vaticano por ser autor da tradução da Septuaginta. O que achou do parágrafo a que teve direito?
De facto, Frédéric Martel entrou em contacto comigo para me entrevistar e chegámos a marcar o dia e a hora da entrevista em Coimbra, mas acabou por não se realizar por causa de contratempos de agenda. Por isso achei curioso e até um pouco extemporâneo ler ali o meu nome, tanto mais que não sou padre católico. Não pertenço ao grupo de homens a que ele dedicou o seu livro, homens obrigados pela Igreja a esconder a sua homossexualidade.
Nova Gramática do Latim
Frederico Lourenço
Quetzal Editores, 502 páginas
[Foto:
Maria João Gala/Global Imagens - fonte: www.dn.pt]
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