O que a gíria brasileira de maior sucesso dos últimos tempos diz sobre nós
No rádio do carro, na narração de Flamengo 1x0
Corinthians, o locutor e os comentaristas abusavam de uma rubro-negrice
ululante, não necessariamente autêntica, torcendo bem mais do que eu me
lembrava ser de bom tom nos velhos domingos cariocas embalados por
Waldir Amaral, Jorge Curi e João Saldanha. Até aí, tudo bem.
Mais estranho era um outro abuso: a cada minuto em média, talvez
menos, um dos radialistas disparava ao microfone com gosto evidente a
palavra “pistola”. Não no sentido de arma de fogo
que importamos do francês “pistole”, mas naquele que se tornou uma
gíria brasileira de imenso sucesso: irritado, zangado, furioso.
Não estou exagerando: era um festival de pistolas.
Porque fulano tinha ficado pistola com o companheiro que não lhe
passara a bola, a torcida estava pistola com o jogador tal, o juiz ficou
pistola e puxou o cartão, etc.
Aquela saraivada de pistolas não tinha a menor chance de soar
natural. Ninguém repete tantas vezes uma palavra se isso não obedecer a
um, digamos, projeto. Mas qual poderia ser a plataforma linguística
daqueles sujeitos gritalhões?
A hipótese mais óbvia é que quisessem soar espertinhos, engraçados,
“jovens”. Estamos falando daquela que é, indiscutivelmente, a gíria mais
bem sucedida no país de um ano para cá, período em que começamos a ver
“pistolas” sendo sacadas por tiozões quando querem parecer enturmados.
Nesse caso, aqueles pistoleiros radiofônicos seriam os arautos
eloquentes de um fenômeno bastante comum: o da gíria que transborda do
grupo que a criou e penetra, em versão que poderíamos chamar de butique,
no vocabulário geral da sociedade, onde na maior parte dos casos está
destinada a ser explorada e gasta até morrer.
A questão da pistolagem se encerraria aí se não me ocorresse uma
segunda hipótese, quem sabe complementar: e se aqueles radialistas, com
suas pistolas automáticas que não paravam de atirar, estivessem agindo
como antenas, captando e dando voz ao sentimento mais vivo neste momento
numa população que anda pistola, pistolíssima —e com razões de sobra
para isso?
O vocabulário da raiva e da bile sempre foi inventivo à beça. Para
cada furibundo, colérico, fulo ou apoplético de antigamente temos, em
versões mais correntes de meio século para cá, um puto, um tiririca, um
bravo ou um buzina.
O acréscimo de pistola a essa lista de sinônimos parece seguir a
linha cômica que nos deu buzina, mas ao mesmo tempo acentua de forma
alarmante a violência da reação: em vez de apenas fazer barulho como o
buzina, gritando sua fúria, o pistola faz barulho e ainda manda bala.
Embora haja indícios de um DNA paulistano,
provavelmente ligado ao submundo do crime e replicado em bordões do
“Pânico na TV”, a origem exata dessa acepção de pistola é obscura, como
costuma ocorrer em tais casos. É possível que não passe de coincidência a
semelhança de som e sentido com o inglês “pissed-off”, por mais que
nossa anglofilia militante recomende manter a tese na gaveta para
eventual uso futuro.
Seja como for, parece razoável que uma gíria belicosa tome o país de
assalto num momento tão desolador de nossa história, quando se constata
um aumento de 23% nos homicídios de jovens entre 2006 e 2016 e quando um tosco candidato a presidente que cultua o chumbo grosso é líder nas pesquisas.
Em mais de um sentido, não há exagero algum em dizer que o Brasil é hoje o país dos(as) pistolas.
[Foto: Giuseppe Porzani - fonte: www.folha.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário