Escrito por Contardo Calligaris
Há duas maneiras, aparentemente opostas, de entender o
desejo sexual da gente.
Alguns (talvez os mais numerosos) dizem que desejam seu parceiro ou
parceira, e isso é o que importa.
Outros declaram que o desejo sempre depende de fantasias. Se essas
fantasias não forem realizadas ou evocadas na hora do sexo, não haverá parceiro
ou parceira que baste para que o desejo dê o ar da graça.
Os primeiros, geralmente, acusam os segundos de serem
"desviantes": em vez de curtir um semelhante, esses
"tarados" gostam de situações, objetos etc. É aquela coisa: você diz
que gosta de mim, mas você gosta é de me amarrar, ou de deixar a janela aberta
e esperar que alguém esteja olhando ou outras esquisitices desse tipo. Você nem
sequer transa com pessoas, você transa com seus filmezinhos de bolso.
Os segundos se defendem exortando os primeiros a pensar um pouco mais:
talvez eles também brinquem com situações, objetos e filmezinhos de bolso, só
que de maneira oculta. Os pensamentos bizarros e impuros dos segundos não
teriam nada de "desviante": o desejo sexual seria sempre movimentado
por fantasias.
Só que os primeiros desconheceriam esse fato: eles achariam que estão
morrendo de tesão por seus parceiros, enquanto os ditos parceiros só lhes
serviriam de auxiliares para realizar fantasias inconscientes.
Penso assim: sim, o desejo da gente se excita por causa de situações,
objetos etc., mas o parceiro ou parceira da gente é mais do que um figurante no
nosso filmezinho ou um cabide para os objetos que nos excitam.
Imagine alguém que só se excita vendo as lágrimas jorrarem dos olhos do
seu parceiro (sim, existe). Será que ela se excitaria vendo qualquer um chorar?
Claro que não.
Ou imagine alguém que só se excita humilhando sua parceira, mas essa
fantasia só funciona se ele for apaixonado por essa parceira. No caso, o que
sustenta o desejo? É a fantasia ou é a parceira amada?
Esses são alguns dos pensamentos com os quais saí do cinema, depois de
assistir a "Kiki - Os Segredos do Desejo", de Paco León.
É uma pena que o filme passe em poucas salas. Ele conta cinco histórias de
amor e sexo que podem surpreender um pouco quem não tenha uma certa
familiaridade com o vasto campo das ditas parafilias (ou seja, formas
"diferentes" de amar).
Se, dos nossos dois grupos, você pertence ao primeiro, o filme terá o
efeito (benéfico) de aumentar sua tolerância; descobrir e entender desejos
diferentes do da gente é o melhor jeito de começar a entender o desejo que nos
anima. Além disso, as histórias conseguem ser leves e muito bem-humoradas sem
se tornar cômicas (o que as afastaria de nós, tornando-as
"pitorescas"). Ou seja, a gente ri bastante no filme, mas não tanto
dos protagonistas e de seus estranhos desejos, quanto, sobretudo, de nós
mesmos.
Se, dos nossos dois grupos, você pertence ao segundo, o filme terá o
efeito (também benéfico) de retirar um pouco do caráter trágico da experiência
de quem alimenta seu desejo em fantasias menos comuns.
Seja como for, que você esteja entre os primeiros ou entre os segundos, o
filme não nos deixa subestimar ou, pior, desrespeitar as fantasias (dos outros
e nossas). Isso, por si só, é uma forma de sabedoria, que tem consequências
práticas imediatas na vida amorosa.
Um exemplo. Imaginemos que cada indivíduo (até se pertencer ao nosso
primeiro grupo) tenha uma fantasia (consciente ou inconsciente), a qual rege
seu desejo sexual. Essa fantasia pode ser reprimida, esquecida, confinada num
armário, mas ela não vai mudar.
Conclusão: se você tem repugnância pela fantasia sexual de seu amado ou de
sua amada, ou simplesmente se você não a curte, pois bem, desista dele ou dela.
Nunca se engaje numa relação imaginando que, "pela força do
amor", você vai poder modificar a fantasia sexual de seu parceiro ou
parceira. Tampouco se engaje numa relação com o projeto de tornar irrelevante a
fantasia do outro ("ele vai se acostumar a gostar de mim como eu sou, sem
todas essas frescuras etc.").
As fantasias sexuais de alguém não mudam quanto ao essencial. Também é
impossível que cada um de nós encontre um parceiro ou uma parceira que tenha
uma fantasia complementar à nossa. Apesar disso, como mostra "Kiki",
cotidianamente, acontece um milagre: casais se encontram, se formam e, bem ou
mal, fazem sexo juntos.
[Ilustração: Mariza /Mariza/Editoria de Arte/Folhapress - fonte: www.folha.com.br]
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