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O sambista Cartola durante apresentação
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Escrito por Sérgio Rodrigues
"Liberdade não é sobre transar na primeira noite, e sim
sobre não querer transar e não transar." A frase me aparece no artigo de
uma jovem feminista brasileira que as ondas digitais trouxeram casualmente à
minha praia.
Incorporo o velho copidesque e a traduzo mentalmente para o
português publicável: "Liberdade não tem a ver com transar na primeira
noite, e sim com não querer transar e não transar". Só então me dou conta
de que, fazendo isso sempre que me deparo com a construção torta, ando
ocupadíssimo.
Como tantas traduções ruins, "ser sobre" deixa
entrever a construção estrangeira que tem por matriz -no caso, o inglês
"to be about".
Em dublagem barata de telefilme, passa. Num texto original
brasileiro, a ideia contida em "to be about" costuma ser expressa
pelas palavras "ter a ver com", "ter relação com". Ou
mesmo, num belo exemplo de concisão, pelo verbo "ser"!
Não fica bacana? "Liberdade não é transar na primeira
noite, e sim não querer transar e não transar."
Estamos falando de um dos mais insidiosos modismos importados
da língua do Pato Donald. Uma tradução literal que poderíamos chamar de
macunaímica -no sentido da preguiça, sem dúvida; no da ausência de caráter,
talvez.
Quero deixar claro que não sou xenófobo ou purista. A língua
portuguesa não é uma moçoila virginal ameaçada pela avalanche de palavras
inglesas. É mais forte do que se pensa e, vamos falar claro, nunca foi santa.
A própria "avalanche" do parágrafo anterior,
remanescente do tsunami de palavras francesas que arrastou nossos letrados no
século 19, prova que uma dieta rica em estrangeirismos engorda e faz crescer.
Aliás, o termo japonês "tsunami" está no mesmo caso.
Podíamos ficar nisso o dia todo.
Anos atrás, fui um dos críticos do projeto do deputado Aldo
Rebelo (PCdoB) que previa multa para quem usasse palavras importadas. Coisa não
só irrealizável, mas ignorante em sua visão do idioma e perigosa em sua
inspiração totalitária.
Nada disso nos obriga a aplaudir a anglofilia jeca que
acomete setores da classe média, em especial lá pelas bandas do corporativês,
do marquetês e do informatiquês.
Se o uso de termos anglófonos tem lógica econômica, pois as
palavras vêm nos pacotes de tecnologia e serviços que importamos, seu alcance é
muito ampliado por certa aura, por uma sobra de valor simbólico.
Aquilo que se exprime em inglês, idioma "vencedor",
soa mais sério, competitivo, atraente. Isso, sim, me parece um alvo digno de
chumbo grosso. O abuso de estrangeirismos não ameaça o português, mas revela
uma deficiência de autoestima.
É sintoma de um problema cultural.
O que fazer? Confesso que, além da minha resposta-padrão para
as mazelas brasileiras em geral (educação, educação, educação!), não sei.
Talvez um começo seja denunciar a postura culturalmente
servil que falantes educados, quem sabe intelectuais, alguns até inflamados de
nacionalismo, revelam sem querer quando concebem uma construção grotesca como
"ser brasileiro é sobre ter jogo de cintura".
Ou não. Vai ver que o errado sou eu e que um dia teremos de
traduzir para o "sobrismo" diversas frases famosas de nossa história:
"Um país é sobre homens e livros" (Monteiro Lobato); "Governar é
sobre abrir estradas" (Washington Luís); "O mundo é sobre um
moinho" (Cartola).
[Foto: acervo Museu do
Samba – fonte: www.folha.com.br]
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