Sou professor desde 1975. Desde sempre, a base das minhas
aulas reside em textos dos mais diferentes matizes, da literatura clássica à
moderna, da publicidade à nossa riquíssima música popular, do jornalismo aos
fatos dos nossos dialetos etc.
Ninguém consegue compreender um texto sem o domínio da
variedade linguística em que ele foi escrito, mas esse domínio não é
suficiente. Sem compreender os diálogos que o texto que se lê estabelece com
outros textos, com a história, com o presente, com o mundo em que se está e com
outros mundos, nada de nada de compreender o que se lê.
Pois bem. Os brasileiros estamos, dia após dia, em contato
com sucessivos fatos que expõem a nossa tragédia, a nossa miséria, o nosso
atraso, a face crua da nossa barbárie, o nosso horror cotidiano, inexorável,
boçal. Como dizia Caetano Veloso na canção "Podres Poderes", de 1984,
"Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam
os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais".
Gente que leva tudo ao pé da letra talvez não consiga
entender a relação "avançam os sinais vermelhos/perdem os
verdes", chave para a compreensão do excerto, finalizado com a triste e
lamentavelmente verdadeira sentença: "Somos uns boçais". Note que o
verbo não está na terceira do plural ("São"), mas na primeira
("somos"). Poderia soar arrogante e presunçoso excluir-se do bolo, da
massa, da massa bruta, da bruta massa de que fazemos parte neste triste Brasil.
O Brasilzão de 2014 ainda avança os sinais vermelhos e perde
os verdes, se é que chega a enxergá-los.
Num álbum posterior (o primoroso "Circulado", de
1991), o mesmo Caetano incluiu a também ainda atual canção "O Cu do
Mundo", em cuja letra se encontram estes versos: "O furto, o estupro,
o rápido pútrido / O fétido sequestro / O adjetivo esdrúxulo em U / Onde o cujo
faz a curva / (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido/ o criminoso
só / Substantivo, comum / O fruto espúrio reluz / À subsombra desumana dos
linchadores / A mais triste nação / Na época mais podre / Compõe-se de
possíveis / Grupos de linchadores". Certamente Caetano não tirou do nada
esses versos. Duas décadas depois, nada mudou, nada muda neste país.
Fico me perguntando o que poderia ter mudado se, nesses anos
todos, os professores tivéssemos trabalhado textos como esses (não só nas aulas
de português, mas também nas de história, geografia, filosofia etc.).
Será que a sala de aula ainda tem (se é que já
teve) o poder de fazer a garotada mergulhar na reflexão sobre a nossa dura
realidade? Será que o nosso sistema educacional e os nossos professores têm
mesmo condições de promover a tão propalada "revolução pela educação"
e, consequentemente, de pôr para aprender a pensar a nossa garotada toda?
E será que a nossa sociedade, violenta até mais não poder,
tem condições de estabelecer a paz? Quando digo "violenta até mais não
poder", não me refiro aos criminosos "verdadeiros"; refiro-me ao
cidadão brasileiro médio, aquele que trafega no acostamento das rodovias, que
ultrapassa na entrada da cabine de pedágio, que não respeita a faixa de
pedestres, que impõe a toda a vizinhança, em altíssimo volume, o som de
bate-estaca etc., etc., etc. Isso tudo não é característica de uma sociedade
violentíssima e boçal, caro leitor?
Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando
escancara a realidade. Os velhos versos de Caetano são apenas uma pequena
amostra do que se pode aprender, apreender, compreender e depreender da leitura
e da audição do que não é lixo. Aliás, chega de lixo! É isso.
Pasquale Cipro Neto
[Fonte: www.folha.com.br]
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