Acho que já relatei aqui o que me disse um anestesista minutos
antes de entrar para a sala de cirurgia em que um dos meus filhos seria
operado. Salvo engano,
o fato ocorreu em 1985. Perguntei-lhe o básico (que anestesia seria aplicada
etc.). Depois de algumas explicações, ele concluiu: "Mas não se preocupe; seu
filho é uma criança eutrófica".
Não lembro o que lhe respondi, mas disse-lhe algo que se
apoiava na compreensão do que ele quis dizer com "criança eutrófica".
Imediatamente ele retrucou: "Você é colega?". "Não", disse
eu; "sou professor de português e, por força do ofício, conheço um pouco
de grego e latim".
O fato é que a tal criança "eutrófica" é uma criança
bem desenvolvida, bem nutrida, forte etc. Em "eutrófico/a" temos o
elemento grego "eu-" ("bem", "bom"), o mesmo de
"eufônico" ("que soa
bem"), e o também grego "-trofia" ("nutrição",
"desenvolvimento", "alimentação").
Mas o que de fato conta é isto: o anestesista agiu bem
quando me disse que meu filho era "uma criança eutrófica"? Essa
linguagem é adequada? Que acha disso, caro leitor?
Nesta semana, no quesito "linguagem fechada",
tivemos um caso bem interessante. Em pronunciamento exibido durante o
"SPTV 2ª Edição" da última terça-feira, o secretário da Saúde da
cidade de São Paulo,
José de Filippi Júnior, disse estas palavras: "...se não estava associado
a alguma outra comorbidade...". Entendeu, caro leitor? Sabe dizer de
bate-pronto o que é "comorbidade"? E, por sinal, saberia como grafar
esse mostrengo?
Repito a pergunta que fiz no fim do quarto parágrafo: essa
linguagem é adequada? Que acha disso, caro leitor? Bem, antes que alguém pergunte, o "Houaiss"
define "morbidade" como "conjunto de causas capazes de produzir
uma doença", "incidência relativa de uma doença". O prefixo
"co-" de "comorbidade" é o mesmo de "copiloto" e,
como se sabe, indica ideia de união, junção etc.
Peço licença ao grande Elio Gaspari para dizer que Madame
Natasha supõe que o secretário da Saúde paulistano quis dizer que pode haver
alguma associação (falava-se de um caso de dengue) de causas, ou seja, que,
além da dengue... Bem, não preciso concluir, certo, caro leitor?
É de ressaltar que o prefixo "co-" é um tanto
incompatível com a expressão "alguma outra" ("associado a alguma
outra comorbidade") já que, se existe "comorbidade", existe
outra "morbidade" além da que está em discussão. Parece que teria
sido bem melhor ir
direto ao ponto, com linguagem clara, não específica, sobretudo por se tratar
de uma entrevista a uma emissora de TV.
A chave de ouro
desta semana vem do presidente da Infraero, Gustavo do Vale, que, ao tentar
explicar o inexplicável (a quizumba em que está boa parte dos nossos
aeroportos), usou a palavra "tapear" nesta passagem: "Nós
podemos tapear as obras de modo que você melhore a operacionalidade...".
No dia seguinte, a Infraero publicou uma nota em que informa que Vale disse
"tapear" no lugar de "etapear", palavra que os nossos
dicionários ainda não registram. A nota afirma que Rogério Magri, ou melhor,
Gustavo Vale quis dizer que é possível fazer as obras em etapas, o que, de
certa forma, condiz com o que ele dissera antes ("...o aeroporto não tem
essa questão da obra terminar e não se fazer mais nada; isso é uma coisa
constante...").

Entendi. Divide-se a obra em etapas (inumeráveis, de acordo
com a lógica do discurso do presidente da Infaero) e espera-se pelo fim do
mundo, que chegará antes do fim das obras nos aeroportos, que, como se viu,
nunca terão fim. Haja palavreado para disfarçar o indisfarçável. É isso.
Pasquale Cipro Neto
[Fonte:
www.folha.com.br]
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