domingo, 27 de abril de 2014

José Afonso da Silva: O problema das biografias autorizadas

As chamadas biografias autorizadas não raro são escritas por encomenda, mediante pagamento. Personalidades que se acham importantes contratam com algum escriba a elaboração de sua biografia, que é submetida à sua apreciação, de sorte que, se for por ele aprovada, será publicada, se não, não o será. São sempre panegíricas, e é para ser elogiado que o biografado contrata a biografia.

A esse propósito, lavra a discussão, entre nós, tendo em vista o disposto no art. 20 do Código Civil, de 2002, com base no qual Roberto Carlos foi a juízo para proibir a divulgação de sua biografia sem sua autorização. A questão da constitucionalidade do dispositivo pende de decisão do Supremo Tribunal Federal. Este texto quer ser uma contribuição ao debate.

Aquele artigo declara, em essência, que, salvo autorização, a divulgação de escrito, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas a seu requerimento, sem prejuízo da indenização que couber. Aí está dito: "Salvo autorização, a divulgação de escrito... de uma pessoa...".

A primeira questão interpretativa que se apresenta é esta: escrito de uma pessoa, como está dito no artigo, ou escrito sobre uma pessoa, como um grupo formado por Caetano Veloso, Chico Buarque, Gil e o próprio Roberto Carlos querem ou quiseram. De fato, o arthttp://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png. 20 não proíbe a divulgação ou publicação de escrito sobre uma pessoa, que é o que define uma biografia. Por outro lado, a imagem de uma pessoa pode ser imagem-figura e imagem-atributo.

Divulgar escrito entra neste segundo tipo. É claro que o escrito de uma pessoa só pode ser divulgado ou publicado com sua autorização, porque aí está envolvido o direito econômico e moral do autor, razão por que se fala em indenização.

De toda forma, o dispositivo deve ser interpretado tendo em vista regras da Constituição de 1988, sobretudo o disposto no arthttp://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png. 5º, IX, segundo o qual "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou de licença". E ainda há o art. 220, segundo o qual a manifestação do pensamento, a criação e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição.

A biografia é uma atividade intelectual, inequivocamente, é manifestação do pensamento, é criação e até informação, além de sua dimensão histórica. Logo, é uma atividade livre que não pode sofrer censura nem restrição nem precisa de licença para ser publicada.

Demais, o invocado direito à privacidade para exigir-se a autorização não ocorre no caso, primeiro tendo em vista aquela liberdade garantida nos dispositivos constitucionais, segundo a pessoa notória, que se torna de interesse público pela fama ou significação intelectual, artística ou política e não poderá alegar ofensa a seu direito à imagem se a divulgação estiver ligada à ciência, às letras, à moral, à artehttp://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png e à política.

As biografias autorizadas caem no rol do panegírico, do louvor, ou porque o biógrafo ganhou para elaborá-la ao gosto do biografado, ou porque o biógrafo admira tanto o biografado que seu objetivo é mesmo destacar suas qualidades.

JOSÉ AFONSO DA SILVA, 88, constitucionalista, é professor aposentado de direito da USP

[Fonte: www.folha.com.br]



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