Por quase cinco horas, dezessete líderes de associações defenderam suas posições
Por Julio Maria
As biografias são apenas a ponta. Ao puxá-la, a ministra
do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, parece ter encontrado um
iceberg bem maior do que aparentava ser a exigência de liberações
prévias para publicações de livros biográficos. Por quase cinco horas,
dezessete líderes de associações representadas por jornalistas,
produtores de cinema, escritores, pesquisadores, professores, políticos e
advogados defenderam, nesta quinta, em Brasília, suas ideias sobre o
que uns chamam de censura e outros de autorização prévia. Argumentos que
ainda não haviam emergido na discussão. A audiência pública pedida pela
ministra serviu para abastecer o Supremo de informações sobre o assunto
antes que ele seja colocado em pauta para a votação de uma Adin (Ação
de Inconstitucionalidade) movida pelo Sindicato Nacional dos Editores de
Livros (SNEL). Cármen Lúcia prometeu entregar suas conclusões ao
presidente da Casa, Joaquim Barbosa, até o dia 14 de dezembro, o que
possibilitaria a realização da votação ainda neste ano, já que o recesso
será a partir do dia 20 de dezembro.
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A ministra Cármen Lúcia |
A juíza decidiu não receber expositores com interesses particulares
na questão, para evitar a particularização do assunto. “Estamos aqui para
discutir a tese da lei. O interesse não é particular, é público”,
disse, logo na abertura. Conseguiu com isso dois efeitos. O bom:
despolarizou o debate que vinha sendo feito até então entre biógrafos,
editores de livros e artistas potencialmente biografáveis. E o ruim: ao
não aceitar a presença de nenhum biografado ou representante da
Associação Procure Saber, formada por Chico Buarque, Caetano e Gilberto
Gil, presidiu um debate por vezes sem equilíbrio. Dos 17 expositores,
apenas dois falaram pela necessidade da autorização prévia: o deputado
federal Marcos Rogério (PDT-RO) e o advogado da Associação Eduardo
Banks, Ralph Lichote. O deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) defendeu o
“meio termo”.
A escritora Ana Maria Machado falou em nome da Academia Brasileira de
Letras. Acusou primeiro as tentativas de censura: “Na democracia, não
há lugar para índex de livros proibidos”. Filosofou: “Conhecer vidas é
uma ferramenta para a construção do futuro e para a elaboração da
identidade cultural de um povo”. E alertou para um argumento que
voltaria a ser visitado: “Outro grave risco é a instalação da censura à
imprensa. As redações dos artigos (que preveem a autorização prévia) não
falam apenas de biografias”. O mesmo caminho foi tomado pelo
historiador José Murilo de Carvalho. Depois de falar como pesquisador,
disse que falaria como cidadão: “A censura prévia (como é hoje) pode
inviabilizar a publicação de qualquer notícia de jornal. Não podemos
criar uma casta de intocáveis. Estamos diante de um ovo da serpente e,
para destruir esse ovo, espera-se que esses artigos sejam declarados
inconstitucionais”.
Os produtores independentes de TV foram representados por Leo
Wojdyslawski. Ele fez o que a ministra tentou evitar, a personificação
do debate, mas conseguiu as atenções. “Está sendo feito um filme sobre a
juventude de Pelé. Como não foi possível ter a autorização de todos,
vários personagens importantes terão de ser cortados.” E deu outro
exemplo: “Dois herdeiros já disseram que não irão autorizar uma produção
sobre a vida de Guimarães Rosa, sobre sua ajuda aos judeus diante da
ameaça nazista. Temos de lembrar que esta lei não diz respeito só aos
biografados centrais, mas aos personagens secundários também. Muitos
projetos estão sendo abortados já no nascedouro”. As biografias voltaram
à pauta de Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta. “Qualquer
proibição deve ser rechaçada. No entanto, se houver falta de
responsabilidade, equívocos e inverdades, o autor responderá à
posteriori. Hoje, a censura está proibida no Brasil.”
Foi curioso ver três deputados federais deixando a Câmara, onde estão
às voltas com um projeto de lei sobre o mesmo assunto, prestes a ser
votado, para sentarem-se diante da ministra no STF. Nos bastidores,
comenta-se que será uma humilhação se o Judiciário sair na frente com
alguma decisão sobre o assunto. Newton Lima (PT-SP), escolado nas
defesas da causa, repetiu a cartilha. “Se a pessoa é pública, seu
direito à privacidade diminui. É o ônus e o bônus da vida notória.”
Citou um exemplo do passado, o episódio Roberto Carlos, que conseguiu
retirar de circulação o livro de Paulo César de Araújo. E um do futuro.
“Imagine se um de nós quisermos escrever sobre a ditadura por meio da
biografia de um de seus generais. Jamais a família dessas pessoas dariam
autorizações para isso.”
A expressão da ministra, neste momento, era de reflexão. Por fim,
ameaçou entregar ao Judiciário a cabeça de seu próprio projeto no
Legislativo. “Se não formos capazes de reparar o erro no Congresso, que
este Tribunal repare e decrete o fim da censura prévia às biografias.”
Depois de ouvir o deputado citar Roberto Carlos, a ministra voltou a
fazer ressalvas com certo constrangimento sobre a não aceitação de seus
representantes. “Tivemos pedidos de biógrafos e de biografados, mas suas
questões já haviam sido judicializadas e a discussão em tese não se
cumpriria.”
No ápice do discurso de Claudio Vasconcelos, do Sindicato da
Indústria Audiovisual, ele disse que artistas que não admitem ser
biografados sem autorizarem as obras são como “seres mitológicos que não
cometem erros, para os quais devemos olhar de baixo para cima”. E que
“controlar biografias é controlar a história”. Terminou dizendo que “o
Brasil está em uma posição constrangedora por ser o único país em que é
preciso submeter o registro histórico a seus personagens”.
A essa altura, já havia um clima de “o que é que estamos fazendo
aqui, então, se todos concordam que a lei deve ser mudada?” Até que se
levantou o deputado Marcos Rogério. “Vou ler um trecho de uma decisão de
um juiz sobre o livro que fala de um jogador de futebol muito
conhecido. É um trecho que coloca abaixo as alegações da Adin”, disse,
sem citar nomes. O livro ao qual se referiria é O Anjo Pornográfico,
biografia de Garrincha escrita por Ruy Castro em 1995, que iniciaria
uma batalha judicial de 11 anos entre autor e herdeiros do jogador.
“A obra não faz justiça ao jogador, não se limita às proezas do
futebol. Vai além, invadindo sua intimidade como cidadão. Em lugar do
atleta vencedor, mostra um homem deprimido, quase um farrapo humano, pai
irresponsável, marido infiel e ébrio inveterado”, lia a decisão. “Qual o
interesse público envolvido aqui?”, provocou o deputado, antes de
atacar. “A ação (Adin) quer a liberdade de expressão para expor a
intimidade das pessoas com fins lucrativos. Proteger a intimidade dos
cidadãos é um dever do Estado.”
Sonia Jardim, presidente da SNEL, autora da Adin, levantou-se na
sequência. Mas, amarrada ao discurso escrito, não respondeu ao deputado.
Falou sobre a criação de um balcão de negócios causada pela autorização
prévia, conseguida muitas vezes mediante pagamentos de altas quantias
às famílias dos biografados. “Esses valores inviabilizam as obras.” E,
então, um momento constrangedor. Ralph Lichote, da Associação Eduardo
Banks, ergueu-se para dizer por que achava que a lei deve seguir como
está. Atrapalhado com as palavras, nervoso, recebia um olhar de
impaciência da ministra. “Imagine se, às vésperas de uma eleição,
aparece a biografia de um político dizendo que ele fez sei lá o que em
uma festa na faculdade. Pô, todos nós fazemos coisas quando estamos na
faculdade. A pessoa tem de ser avaliada pelo que se tornou. Não vale
dizer que o cara foi um cheirador lá atrás.”
[Foto: Dida Sampaio - fonte: www.estadao.com.br]
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