domingo, 7 de dezembro de 2025

O que resta de nós na privacidade?

 


Escrito por Hugo Gomes

Na busca por “filmes médios”, nada encaixado na grande produção nem no indie ascético, procura-se algo que condense os valores da média produção, por vezes fugaz, por vezes entendido como objecto escapista anódinos, mas nunca vergado à xaropada ou pela chalupice. “Vie Privée” ajusta-se a esses requisitos.

A obra de Rebecca Zlotowski prossegue a demanda de Lilian Steiner, uma psicanalista de perfil cínico e estruturalmente céptica face ao mundo que a circunda e, acrescente-se, sem um pingo de afetuosidade. Ela é Jodie Foster, a envolver-se no francês como poucas e a fazê-lo com habilidade. O enredo arranca com a descoberta do paradeiro de uma das suas clientes (Virginie Efira), que se suicida e deixa uma nota críptica. Juntamente com o ex-marido (Daniel Auteuil), parte à descoberta do segredo: peripécias aqui, outras acolá, até que o caso detectivesco lúdico se converte em algo maior do que eles. E não estamos no calor de um whodunnit“Vie Privée” conforta-se na alegoria da sua própria possibilidade: o pedaço thriller é um aroma, uma especiaria que a protagonista salpica na sua dita “vida privada”, monótona, operática, ritualística: a adrenalina desejada para romper o quotidiano tedioso.

Podemos considerar o filme de Zlotowski algo boémio, por vezes burguês e sem achas para manifestos sociais, mas não lhe podemos retirar certa audácia no tratamento da personagem feminina central: uma mulher fria, figura que muitos realizadores homens usariam para insinuar transformação ou até domesticação. A realizadora procura, nessa Jodie Foster distante e desinteressada, criar um símbolo da nossa supraprivacidade, ou melhor, do isolamento social a que nos submetemos inúmeras vezes em prol do universo laboral (os trabalhos que redefinem a personalidade e a posição no mundo, ou que estabelecem um senso de propósito existencial). A sua eventual ‘domesticação’ tem algo de doce, nunca conservador, (aliás, a relação com o ex-marido procura afrontar a rigidez das relações monogâmicas e matrimoniais), é referência, ou sugestão, saída de um mundo fortalecido que a envolveu, confrontando-a com a própria solidão.

Rebecca Zlotowski, por um lado, é uma realizadora que nos fala constantemente da solidão, e fá-lo por via de solanguerices ou de festividades, e nunca pela melancolia, porque, em “pessoas bem-sucedidas”, a solidão é remate, e como todas as solidões manifesta-se em diferenças e em monstruosidades. E o que é a vida privada senão uma trégua com a nossa solidão?

Entretanto, viva o filme médio de pretensões correspondidas (e com uma participação do Frederick Wiseman como brinde), estamos a precisar dele para não ficarmos sozinhos, ou reduzidos às nossas bolhas.


[Fonte: cinematograficamentefalando.blogs.sapo.pt]

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