Somando e subtraindo, hoje, exatamente quarenta e oito anos
depois da morte de Salvador Allende, o balanço é muito claro e
desafiador
“Aprendam a lição..(porque) muito mais cedo do que tarde, se
abrirão novamente as grandes alamedas por onde passará o homem livre,
para construir uma sociedade melhor.. Tenho a certeza que meu sacrifício
não será em vão.”
Publicado por José Luís Fiori
Salvador Allende, às 9,30 horas da manhã do dia 11 de setembro de 1973.
O
golpe militar, a morte de Salvador Allende e o fim do governo da
Unidade Popular, na manhã nublada, fria e melancólica de Santiago do
Chile, daquele 11 de setembro de 1973, foi um momento trágico da
história politica da esquerda latino-americana, e foi também um momento
de mudança irreversível do pensamento crítico e progressista do
continente.
Nos anos 60, e até o início da década de 70, do
século passado, América Latina viveu um momento de intensa criatividade
intelectual e política. Foi o período áureo da revolução cubana e de sua
influencia sobre os movimentos de luta armada do continente, em
particular, no Brasil, Uruguai e Argentina, e um pouco mais tarde, na
América Central. Foi o tempo do reformismo militar de Velasco Alvarado,
no Peru, e de Juan José Torres, na Bolívia; da volta do peronismo e da e
da vitória de Juan Domingos Perón, na Argentina; da primeira
experiência reformista democrata-cristã, na Venezuela, e, acima de tudo,
do “reformismo cepalino”, de Eduardo Frei, e do “socialismo
democrático”, de Salvador Allende, no Chile.
Tendo como pano de fundo,
como desafio político e intelectual, o “milagre econômico” do regime
militar brasileiro. Neste período, Santiago transformou-se no ponto de
encontro de intelectuais de todo mundo, e virou o epicentro do que
talvez tenha sido o período mais criativo da história politicas e
intelectual latino-americana do século XX. Revolucionários e
reformistas, democrata-cristãos, socialistas, comunistas e radicais,
tecnocratas e intelectuais, líderes sindicais, sacerdotes, artistas e
estudantes discutiam – a todas as horas e em todos os cantos da cidade –
sobre a revolução e o socialismo, mas também, sobre o desenvolvimento e
subdesenvolvimento, industrialização e reforma agrária, imperialismo e
dependência, democracia e reformas sociais, e sobre a própria
especificidade histórica do capitalismo latino-americano.
Por que
Santiago? Porque o Chile foi o único país do continente onde se tentou –
de fato – combinar democracia com socialismo, nacionalizações com
capitalismo privado, e desenvolvimentismo com reforma agrária, durante o
período da Frente Popular, entre 1938 e 1947, e durante o governo da
Unidade Popular, entre 1970 e 1973, mas também, de certa forma, durante o
governo. Na década de 1930, os socialistas e comunistas chilenos
formaram uma Frente Popular com o Partido Radical, venceram as eleições
presidenciais de 1938, e depois foram reeleitos mais três vezes, antes
de serem separados pela intervenção norte-americana, no início da Guerra
Fria, em 1947. Os governos da Frente Popular chilena, sob a liderança
do Partido Radical, colocaram sua ênfase nos programas de
universalização da educação e da saúde publica, mas também na
infraestrutura, no planejamento e na proteção do mercado interno e da
indústria. Mas foi só em 1970 que o governo da Unidade Popular propôs
explicitamente um projeto de “transição democrática para o socialismo” como estratégia de desenvolvimento e sem destruição da economia
capitalista.
Antes de Allende, os democrata-cristão “chilenizaram” o
cobre, e começaram a reforma agrária, mas o governo da UP acelerou a
reforma agrária e radicalizou a nacionalização das empresas estrangeiras
produtoras de cobre, e foi além disto, ao propor criar um “núcleo
industrial estratégico”, de propriedade estatal, que deveria ser o líder
da economia capitalista e o embrião da futura economia socialista.
Este
foi, aliás, o pomo de discórdia que dividiu a esquerda durante todo o
governo da Unidade Popular, chegando até o ponto da ruptura, entre os
que queriam limitar as estatizações industriais aos setores estratégicos
da economia, e os que a queriam estender, até originar um novo “modo
de produção”, sobre a hegemonia estatal. Pois bem, este projeto
absolutamente original de “transição democrática para o socialismo” do
governo da Unidade Popular foi interrompido pelo golpe militar do
general Pinochet, com apoio decisivo dos EUA e do governo militar
brasileiro.
Mas como previu Salvador Allende no seu último
discurso, “muito mais cedo do que tarde”, o Partido Socialista voltou ao
governo do Chile, em 1989, aliado com os democrata-cristãos. Só que
naquele momento os comunistas chilenos haviam sido dizimados, e os
socialistas já haviam aderido ao consenso neoliberal, hegemônico, durante
a década de 90, e haviam deixado de lado os seus sonhos socialistas.
Uma década depois, entretanto, no início do século XXI, a esquerda
avançou muito mais e conquistou o governo de quase todos os países da
América do Sul. E nesta hora, um grande numero de jovens das décadas de
60 e 70, que escutaram as últimas palavras de Allende, no Palacio de la
Moneda, foram chamados a governar.
Por todo lado, em vários pontos da
América do Sul, a esquerda voltou a discutir sobre o socialismo, o
desenvolvimentismo, a igualdade e as novas estratégias de transformação
social para o século XXI. Mas depois de uma década, a esquerda
latino-americana deu-se conta de que a palavra “socialismo’ hoje tem
conotações absolutamente diferentes nas montanhas andinas, nas grandes
metrópoles, nos pequenos povoados, ou nos vastos campos ocupados pelo
sucesso exportador do agrobusiness; que o “desenvolvimentismo” se
transformou num projeto anódino e tecnocrático, desprovido de qualquer
horizonte utópico; que defender a “indústria” ou a “reindustrialização”,
virou um lugar-comum da imprensa, que pode significar qualquer coisa
segundo o economista de turno; e o “reformismo social” foi dissolvido
num conjunto de políticas e programas desconexos originários do Banco
Mundial, mais preocupado com o seu “custo-efetividade” do que com a luta
pela igualdade social.
Somando e subtraindo, hoje, exatamente
quarenta e oito anos depois da morte de Salvador Allende, o balanço é
muito claro e desafiador: a geração de esquerda dos anos 60 e 70 chegou
em muitos países ao poder, mas já não tinha mais do seu lado a força do
sonho e da utopia que levou Salvador Allende à resistência, ao silencio e
à morte, naquela manhã violenta e inesquecível do dia 11 de setembro de
1973, na cidade nublada, fria e melancólica de Santiago do Chile.
11 de setembro de 20
*Este
artigo apenas atualiza a data e reproduz outro com o mesmo nome
publicado em Carta Maior, em 9 de setembro de 2013. Sua inclusão neste
livro é uma homenagem a Salvado Allende. democrata-cristão, de Eduardo
Frei, entre 1964 e 1970.
[Foto: Reuters - fonte: www.cartamaior.com.br]
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