segunda-feira, 20 de julho de 2020

«O brasileiro hoje aparece como violento, xenófobo, racista e homofóbico», diz Joel Birman

Para o psicanalista Joel Birman, a pandemia é uma “mudança civilizatória”. Se o século XX começou com uma guerra, o XXI se inicia a partir da Covid-19. Com a agenda cheia de atendimentos remotos, ele se divide entre aplacar as angústias humanas atuais e escrever um novo livro. “A psicanálise e as inflexões civilizatórias da pandemia” (título provisório) deve chegar às livrarias no próximo semestre, pela editora Civilização Brasileira, recheado de reflexões sobre o Brasil de hoje.

O psicanalista Joel Birman define a pandemia como uma mudança civilizatória que marca o início do século XXI.

Escrito por Maria Fortuna

Médico formado pela UFRJ, com mais de 40 anos de consultório como psicanalista, Birman é doutor em Filosofia pela USP, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, professor de psicanálise da UFRJ e dono de um prêmio Jabuti (2013) pelo livro “O sujeito na contemporaneidade”. Na conversa a seguir, ele conta como a Covid-19 deságua em seu divã, analisa o comportamento negacionista de parte da população brasileira diante da tragédia e comenta e episódios como o “cidadão não, engenheiro civil, melhor que você”.
— Se existe a renovação de uma moralidade duvidosa do Rio recente, ela vem da cultura da corrupção e da milícia, associada à ideologia bolsonarista — afirma.

Pessoas se aglomeram em bares do Leblon e fazem piada com a pandemia, enquanto doentes morrem no hospital. Como chegamos nesse ponto, o carioca faliu moralmente?
Quem se manifesta de maneira agressiva, xingando a pandemia e desafiando a morte, representa um segmento bolsonarista. Mas, sobre as pessoas que respeitam as normas sanitárias, precisamos considerar aspectos como o de que o brasileiro não obedece a imperativos.
Países asiáticos aceitaram as regras porque têm tradição de Estado forte, da disciplina, da obediência a imperadores. Nós, ocidentais, não. Desde a Revolução Francesa assumimos a tradição individualista, arraigada em nosso corpo e psiquê. É como essas restrições implicassem numa redução das nossas liberdades individuais.
Frei Betto contou que, quando saiu da prisão, tinha ânsia de recuperar intensamente os prazeres que havia perdido. Era como se a vida estivesse devendo a ele. Muitos sentem o mesmo e, quando há autorização para sair, vivem com a exigência de quem foi privado e beiram o exagero. Arriscam a vida delas e a dos outros.

Qual é a raiz psicológica da frase “cidadão não, engenheiro civil...”? É a mesma do “sabe com quem está falando?”?
Essa fala alude aos valores da sociedade de mercado e não da sociedade política. Como se consumir fosse mais importante do que ser cidadão. Nos valores constituídos da Revolução Francesa e americana, que criaram a nossa República moderna, ser cidadão e ter soberania popular é mais importante do que ser consumidor.
A inversão disso remonta à sociedade neoliberal, que foi afetada pelo coronavírus. Como Roberto da Matta desenvolveu no livro "Carnavais, malandro e heróis", a ideia do "sabe com quem está falando?" retoma valores ancestrais da nossa tradição escravocrata, que opõem pessoas da "casa grande" às da "senzala".

No imaginário coletivo, o carioca sempre foi o “gente boa”. Como episódios desse tipo afetam a nossa imagem?
Historicamente, o carioca sempre desfrutou do privilégio de ser a capital da República. Nos anos 60, quando aconteceu o golpe militar, o Rio era a vanguarda do movimento antiditadura. Era aqui que as manifestações começavam. Por conta disso, a ditadura foi muito dura com a cidade, no sentido de punir para desarticular movimentos políticos. Todos os privilégios foram deslocados sobretudo para São Paulo, que cresceu à sombra da Operação Bandeirantes e a própria ditadura.
Hoje, São Paulo representa essa vanguarda política em função da queda que o Rio sofreu. Quando começou a crescer o movimento contra o racismo estrutural, São Paulo deu o pontapé inicial no Brasil. O Rio teve uma reação mais tímida.
O carioca perdeu a dimensão de rebelde político. Ficou no lugar da irreverência, da alegria de viver, da música, da praia, da cultura de botequim e de suas manifestações corporais tradicionais, que tanto que nos aproximam da africana... Enfim, tudo que hoje é tratado como algo menor por burocratas do mercado.

O jeitinho brasileiro, que pode ser tanto improviso quanto corrupção, nos desviou da noção de cidadania?
A pandemia acentuou nossa desigualdade social, que aparece em termos de gênero, já que as mulheres negras carregam o piano nas costas. Muitas delas são empregadas domésticas, que estão pagando preço alto nas relações com as patroas para trabalhar de forma escrava na pandemia.
A desigualdade de gênero também aparece no aumento da violência contra a mulher e no feminicídio. Os negros pagam a conta da violência policial que, paradoxalmente, aumentou em tempos de isolamento. Há menos movimento na rua. Quem estão matando? Os pobres que precisam trabalhar.
Toda essa coisa do brasileiro boa gente e cheio de alegria foi altamente afetada  pelas consequências trágicas da pandemia por essas razões. O brasileiro hoje, diante do mundo, aparece como um ser violento, xenófobo, agressivo, racista, homofóbico, ressentido. Essa é a imagem do Brasil no exterior. Vamos pagar um preço alto no futuro.

O que entende pelo termo "cidadão de bem"?
Na nossa tradição escravocrata, é como se quem viesse da "casa grande" fosse o tal "cidadão de bem", que desfruta dos valores da cristandade. Tudo que não faz parte dessa realidade branca é da "senzala", os que vão morar na periferia são vistos como famílias disfuncionais.
É como se vivêssemos nessa oposição entre "casa grande" e "senzala", agravada por uma política de Estado genocida em relação a pretos e pobres. Algo como se fosse, em termos europeus, uma depuração étnica. Como se classificá-los de "cidadão não de bem" justificasse seu extermínio.
Porque a melhor forma de fazer um processo de extermínio é reduzir sua condição para que sejam eliminados sem culpa. Como Bolsonaro fez quando usou a representação animal da arroba para se referir aos quilombolas, como se não fossem cidadãos.

O que o desencontro nas informações difundidas pelas três esferas do governo brasileiro, tanto sobre a conduta e os cuidados que a população deveria ter diante do vírus quanto sobre a reabertura de estabelecimentos, provoca na cabeça das pessoas?
O Brasil foi o único país do mundo onde houve uma descoordenação de governos no combate à doença. O efeito disso é o resultado catastrófico do ponto de vista sanitário. Na produção de 76 mil mortos e quase dois milhões de infectados. Essa desarticulação provoca um estado de confusão mental de dupla mensagem.
É a teoria do duplo vínculo, desenvolvida pelo antropólogo Gregory Bateson. Um dilema da comunicação onde se recebem duas ou mais mensagens conflitantes, uma negando a outra. A população brasileira ficou desnorteada, sem saber a quem obedecer. Muito de querer ir para a rua a qualquer preço ou de não usar máscara é resultado disso.

O senhor já classificou de mito a ideia do Brasil pacífico. E a violência explode de vez à medida que em que a luta por por igualdade de homossexuais, mulheres e negros avança. Por que?
Quando as mulheres reivindicam igualdade, negros saem da condição passiva, gays acreditam que têm tanto direito ao prazer e à vida amorosa quanto os héteros e podem-se mudar condições de gênero, criam-se novas marcas identitárias e valores.
Os oprimidos passam a escrever outra história e a colocar em questão a versão  dos vencedores. Esses, por sua vez, aumentam a violência para restaurar a posição subalterna da representação da "senzala". Por isso, entramos na polarização social que vivemos. Razão pela qual as elites econômicas brasileiras se alinharam ao bolsonarismo: elas não querem perder nada, nem os anéis. Diante dessa possibilidade, preferem arrancar os dedos da população que reivindica seus direitos.

Que consequências a falta de praia, festa, samba e bar, hábitos que moldam a identidade carioca, tem sobre a gente?
São espaços identitários muito fortes na cultura do Rio. À medida em que somos privados no que há de mais fundamental no exercício da nossa liberdade, as pessoas reagem. Com qualquer sol, vai-se para a beira da praia, com ou sem máscara. Essa privação tocou nesses valores fundamentais da nossa relação com o corpo, com o ir e vir.
Há um gasto psíquico grande com as novas práticas cotidianas, de lavar as mãos toda hora, higienizar as compras. O efeito é um esvaziamento psíquico-corporal que gera depressão, melancolia.
Sem contar a montanha de 76 mil cadáveres que nos cercam. Não podemos fazer os ritos funerais. Freud chama isso de "impossibilidade do trabalho de luto". Esses mortos estão no ar em todos nós. Parafraseando Sartre, são mortos sem sepultura. Foram enterrados em covas rasas e estamos colados neles. Vamos levar tempo para fazer esse trabalho.

Como percebe os efeitos da Covid-19 em seu divã?
Há neurose de angústia, sensação de morte iminente, de sintomas da Covid. Pessoas que estão atentas demais aos seus corpos e qualquer movimento corporal com que conviveriam em tempos normais passa a ser estranho e fruto do mal da doença. Viram hipocondríacas. A sensação de esvaziamento vital que leva à depressão e à sensação de abandono nos idosos, que não podem beijar os netos, tentam se matar ou se matam mesmo.
Há também os obsessivos compulsivos, que passam a exercer as normas higiênicas com uma ritualidade obssessiva de modo a não conseguirem fazer outra coisa no dia a dia se não tomarem essas medidas. Há ainda o incremento da violência doméstica. O homem que dá porrada na mulher e a obriga a trabalhar mais do que ele dentro de casa. É uma forma de se manter o macho alfa que tem o domínio da história e dizer que ela é que está vulnerável, não ele. E a impossibilidade do trabalho de luto. Tudo isso resulta num altíssimo uso de álcool e drogas para amenizar a angústia.

Qual é a sua visão pessoal sobre o significado do que estamos vivendo?
Acho que vivemos uma mudança civilizatória. Nossa civilização ocidental, desde o final do século XIX constituída na base da ciência e da técnica, e na crença de que éramos infalíveis, num espaço de seis meses foi derrotada por um pequeno organismo invisível, que desarticulou a economia, a sociedade mundial e ameaçou nossa forma de vida.
A Covid-19 é o começo do século XXI, que não se iniciou nos anos 2000, mas com esse evento que mudou as coordenadas civilizatórias que vivíamos desde o século XIX, quando aumentamos a onipotência, podíamos dar contar de tudo, até de explorar estações estelares. De repente, nossa sociedade foi dizimada por um microvírus.
Da mesma forma que o século XX começou com uma guerra mundial, o XXI começou com uma pandemia que é capaz de transformar nossas crenças. Temos de olhar a ciência não com onipotência, mas com perspectiva ética e política.

Como enxerga o atual momento da sociedade, em que discutimos assuntos antes postos para debaixo do tapete, como racismo, homofobia, machismo?
Enquanto isso, o governo Bolsonaro é conservador, reacionário. Há o retorno de pautas de civilidade pré-modernas. Representa a demolição de tudo de melhor na nossa tradição de produção de conhecimento e ciência. Destrói a ordem iluminista e volta ao mundo teocrático anterior, pré-moderno, de base teológica e onde o que está em jogo é o combate do mal sob uma perspectiva religiosa, como na Idade Média.
É um governo marcado pela violência, que trouxe de volta algo que achávamos que estava ultrapassado depois da Constituinte de 1988. Não acreditávamos que voltaríamos a uma série de práticas antidemocráticas, correspondentes a um Brasil do passado que passava despercebido, em que negro é pior que o branco, homem, superior à mulher.
Temos de nos perguntar por que isso aconteceu. Penso que, diferentemente, do que aconteceu no Chile, Argentina e Uruguai, onde houve um acerto de contas com torturadores, que foram judicializados e criminalizados, no Brasil houve uma grande conciliação, em que torturadores foram poupados e ficaram existindo na sombra, no silêncio. O que vemos hoje é o retorno dos ressentidos, dos porões da ditadura.

Como a psicanálise está acompanhando as mudanças do mundo, por exemplo, as questões de gênero?
Os movimentos feminista, homossexual e transexual subverteram os códigos. Se a psicanálise contribuiu para a retirada dos homossexuais da categoria de doença, agora revê sua concepção sobre gêneros para se confrontar com a problemática na contemporaneidade, onde a multiplicidade se impõe.
Não existe psicanálise afastada do campo político. Não é possível pensar no que é ser uma mulher hoje sem considerar pautas atuais. Se a psicanálise não compreender a construção do corpo feminino pela crítica ao patriarcado não enxerga o que está em jogo na opressão feminina e na condição de opressor que os homens exercem. Assim como a questão do negro e o racismo  estrutural.
A psicanálise muda nossas formas de subjetivação transformando o campo da memória. Tocar na história do patriarcado, na hierarquia étnica racial é tocar na nossa história de memórias. Não basta mudar as práticas de violência, é preciso mudar nossas pautas de memória para descobrir o que é ser negro, branco, homem e mulher, diferentemente de como entendemos anos atrás. A psicanálise trabalha na ressignificação e retificação da memória.


[Foto: Marcos Ramos - fonte: www.impactoms.com]

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