Escrito por Contardo Calligaris
Não acredito em teorias conspiratórias sobre o avanço do coronavírus.
Sem dúvida, alguns investidores estão ganhando, porque apostaram na
queda das bolsas. Os ecologistas festejam uma parada econômica que
poderia salvar o planeta.
Há empresas interessadas na imposição de
novas regras para o abate e o condicionamento de carne no imenso
mercado chinês. E há forças políticas que gostam de incutir medo no povo
e assim predispô-lo a aceitar qualquer compromisso moral.
Para todos esses e mais alguns, o vírus é providencial, mas não
acredito que nenhum deles tenha percorrido o mundo com sprays de
coronavírus na mão.
Acredito, sim, em médicos e cientistas: o
vírus é perigoso sobretudo para as pessoas de minha geração. Para os
outros, seus efeitos não diferem muito dos de uma gripe.
De
qualquer forma, na conjuntura mundial atual, a epidemia adquire um
significado que talvez seja tão importante quanto o perigo efetivo que
ela representa.
Sem diminuir os riscos da epidemia nem descuidar
deles, é urgente desvendar os significados que são e serão atribuídos à
epidemia – isso, para que um dano moral não se acrescente ao dano
físico.
Um exemplo para explicar. A aids chegou no começo dos anos 80. Para
muitos, durante anos, além de ser uma infecção viral fatal, ela
significou uma espécie de vingança celeste contra os homossexuais (que
eram as vítimas mais frequentes). No fim, a ciência entendeu que o vírus
não infectava só homens gays. Mesmo assim, a aids continua sendo vista,
ainda hoje, como a expiação de uma culpa – por sexo, promiscuidade e
excesso (“vergonhoso”, sei lá por quê) nos prazeres.
Por uma vez,
os mais reprimidos, em vez de invejar, podiam felicitar-se: “Viu o que
acontece com os que se perdem na suruba?”. A aids era o castigo que
acabaria de vez com a liberação sexual e suas invenções “diabólicas”
desde os anos 1960, como os anticoncepcionais, o divórcio etc.
Bom,
a liberação dos costumes dos anos 1960 continua. A aids como metáfora
do castigo fracassou definitivamente com a descoberta da PrEP, medicação
preventiva que permite voltar para a festa sem se contaminar.
Em
dois grandes ensaios, “A Doença como Metáfora/ Aids e suas Metáforas”
(respectivamente de 1978 e 1988, trad. Cia das Letras, 2007), Susan
Sontag analisou o caso da tuberculose, do câncer e da aids na história
de nossa cultura. E mostrou que as doenças são quase sempre usadas como
metáforas do mal do qual a sociedade deveria ser “curada”.
A cada doença são atribuídos significados diferentes, mas o pano de
fundo é quase sempre um ódio pela vida urbana como lugar mefítico,
perigoso, onde o mal prolifera.
Tomemos o caso da peste na
história da Europa. É claro que o comércio, a circulação de pessoas, e a
invenção das grandes cidades facilitaram o contágio. Mas também é claro
que a peste se tornou uma metáfora do que seria condenável nos avanços
da modernidade ocidental (urbana, viajante, promíscua). Qual seria
então, hoje, o significado da epidemia de coronavírus? Ela é metáfora do
quê?
Não é difícil responder. Estamos (estávamos) no meio de uma
extraordinária impulsão em direção a um mundo cada vez mais aberto, sem
fronteiras: um mundo de viagens, contatos e encontros. Mas, como sempre
acontece, não há fluxo sem o refluxo produzido por aqueles que se
sentiram deixados de fora da festa.
O refluxo é uma vontade
apavorada de ficar em casa, entre familiares e poucos amigos, falando a
mesma língua e das mesmas coisas de sempre.
Considere a Europa fechando-se diante dos refugiados africanos e
asiáticos, e os Estados Unidos, diante dos refugiados das Américas.
Considere a Inglaterra do brexit. Considere a volta de patriotismos
abstratos mundo afora. Considere a estranha vontade de construir muros.
Paira no ar uma nostalgia do lar, um suposto “amor” da “nossa terra”,
que é sobretudo medo do novo e do estrangeiro.
A epidemia de
coronavírus será, por um tempo, metáfora da resistência à ampliação do
mundo. Mas não é o caso de se preocupar. A epidemia não vai ganhar, não
como metáfora.
Nos últimos dias, em Roma, as missas foram
suspensas até no Vaticano, assim como os jogos de futebol, mas o Olimpo
Therme, o maior sex-club da cidade, bombou por mais dois dias.
Inconsciência? Eu diria que foi um ato de resistência contra a epidemia
como metáfora do fechamento do mundo que alguns desejam.
[Fonte: www.fronteiras.com]
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