Escrito por Slavoj Zizek
Embora eu seja por mais de uma década um firme apoiador de Evo
Morales, devo admitir que, depois de ter lido sobre a confusão que se
seguiu a controversa vitória eleitoral de Morales, fiquei mergulhado em
dúvidas… Teria ele também sucumbido à tentação autoritária, como ocorreu
com muitos esquerdistas radicais no poder? Contudo, depois de um ou
dois dias, as coisas logo ficaram claras.
Brandindo uma enorme Bíblia encadernada em couro e autoproclamando-se presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, a segunda vice-presidente
do Senado declarou: “A Bíblia retornou ao palácio do governo.” E
emendou: “Queremos ser uma ferramenta democrática de inclusão e
unidade”. O recém-empossado gabinete de transição, contudo, não continha
uma única pessoa indígena. E isso já diz tudo. Embora a maioria da
população da Bolívia seja composta de indígenas ou mestiços, até a
ascensão de Morales esses setores eram efetivamente excluídos da vida
política, reduzidos à maioria silenciosa daqueles que fazem seu trabalho
sujo nas sombras. O que aconteceu com Morales foi o despertar político
dessa maioria silenciosa que não se enquadrava na rede de relações
capitalistas. Não eram ainda proletários no sentido moderno, permaneciam
imersos em suas identidades sociais tribais pré-modernas – foi assim
que Álvaro García Linera, o vice de Morales, descreveu a situação:
“Na Bolívia, a comida era produzida por agricultores indígenas, edifícios e casas eram construídas por trabalhadores indígenas, as ruas eram limpas por pessoas indígenas, e a elite e as classes médias encarregavam a elas o cuidado de seus filhos. No entanto, a esquerda tradicional parecia cega para isso e se ocupava somente com trabalhadores na grande indústria, dando pouca atenção à identidade étnica desses sujeitos.”Álvaro Garcia Linera, em entrevista a Marcello Musto para a Truth Out, 9 nov. 2019.
Para compreendê-los, precisamos
incorporar nesse quadro o peso histórico da condição deles: essas
pessoas são os sobreviventes de possivelmente o maior holocausto da
história da humanidade, a obliteração das comunidades indígenas pela
colonização espanhola e inglesa das Américas.
A expressão religiosa do estatuto pré-moderno deles é a combinação
única entre catolicismo e a crença na Pacha Mama, a figura da Mãe Terra.
É por isso que, embora Morales tenha se declarado católico, na
Constituição Boliviana vigente (promulgada em 2009), a Igreja Católica
Romana perdeu seu status oficial. No artigo quarto do documento
lê-se: “O Estado respeita e garante a liberdade de religião e de
crenças religiosas, conforma as cosmovisões de cada indivíduo. O Estado é
independente da religião.” É contra essa afirmação da cultura indígena
que o gesto de Añez de exibir a Bíblia é direcionado. A mensagem é
clara: uma afirmação aberta de supremacismo religioso branco, e uma
tentativa não menos aberta de colocar a maioria silenciosa de volta a
seu devido lugar de subordinação. Do México, onde atualmente encontra-se
exilado, Morales já apelou ao papa para que intervenha. A reação do
pontífice vai nos dizer muito. Será que Francisco reagirá como um
verdadeiro cristão e rejeitará de maneira firme a recatolicização
forçada da Bolívia como aquilo que ela realmente é, a saber, como uma
jogada política de poder que trai o núcleo emancipatório do
cristianismo?
Se deixarmos de lado o possível papel do
lítio no golpe (a Bolívia possui grandes reservas de lítio,
matéria-prima das baterias dos carros elétricos), a grande questão é:
por que a Bolívia representa, por mais de uma década, um incômodo tão
grande ao establishment liberal ocidental? O motivo é muito
peculiar: o fato surpreendente de que o despertar político do tribalismo
pré-moderno na Bolívia não resultou em uma nova versão do Sendero
Luminoso ou do show de horrores do Khmer Rouge. O governo Morales não se
enquadra na história conhecida da esquerda radical que, ao tomar o
poder, estragou tudo econômica e politicamente, gerando pobreza e passou
a manter seu poder por meio de medidas autoritárias. Uma prova do
caráter não autoritário do governo Morales é que ele não expurgou
militares e forças policiais de seus opositores (razão pela qual eles se
voltaram contra ele).
Morales e seus seguidores, é claro, não
eram perfeitos: eles cometeram erros, havia conflitos de interesse no
interior de seu movimento. No entanto, o balanço geral é realmente
impressionante. Morales não era Chávez, ele não dispunha de recursos do
petróleo para debelar seus problemas, de forma que seu governo precisou
realizar um trabalho duro e paciente de resolução de problemas no país
mais pobre da América Latina. O resultado não foi nada menos do que
milagroso: a economia deslanchou, os índices de pobreza caíram e a saúde
pública melhorou – e tudo isso garantindo que as instituições
democráticas tão caras aos liberais continuaram funcionando. O governo
Morales manteve um equilíbrio delicado entre formas indígenas de
atividade comunal e política moderna, lutando simultaneamente por
tradição e pautas como os direitos das mulheres.
Para que seja contada a história inteira
do golpe na Bolívia, precisamos de um novo Assange para trazer à tona
documentos secretos relevantes. O que é possível ver agora é que foi
precisamente por terem sido bem-sucedidos que Morales, Linera e seus
seguidores representavam um incômodo tão grande ao establishment
liberal: por mais de uma década a esquerda radical esteve no poder na
Bolívia e o país não “virou uma Cuba ou uma Venezuela”. O socialismo
democrático é possível.
[Fonte: www.outraspalavras.net]
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