Escrito por Sérgio Rodrigues
A coluna da semana passada, chamada "Colocações", terminou prometendo continuar. Sim, eu sei: não é recomendável fazer esse tipo de promessa em jornal. No intervalo, a realidade sempre pode dar uma cambalhota e o clima mudar inteiramente.
No Brasil de 2019 o risco se agravou, mas é geral. Vamos imaginar um colunista semanal de Nova York que, ao fim de uma crônica poética sobre as orquídeas de Rarotonga publicada em 8 de setembro de 2001, anunciasse a continuação da belezura.
Três dias depois, o atentado ao World Trade Center transformava o tema do sujeito num anacronismo destinado a soar ofensivo à sensibilidade dos leitores. Notícias espetaculares desse tipo tendem a virar monotemas, exigindo pitacos inadiáveis do colunista imprevidente.
Não quero comparar a queda das Torres Gêmeas à divulgação das conversas comprometedoras de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Guardadas proporções imensas, ambos são casos explosivos, mas o desmoronamento da dupla do Paraná é menos surpreendente.
Também não pretendo descumprir minha promessa. Só me vejo obrigado a fazer certas adaptações, que de resto até podem, quem sabe, deixar mais clara a tese das "Colocações" originais.
A tese é a seguinte: temos no Brasil uma mistura de domínio precário da norma culta, fruto de uma educação canhestra em todos os níveis, com uma necessidade mais ou menos generalizada de impressionar o interlocutor, tentando assegurar a golpes de vocabulário um lugar ao sol numa sociedade violentamente desigual.
Um dos resultados desse quadro é a preferência nacional pelo termo mais pomposo, a construção mais rebuscada, tudo que pareça menos popular e portanto mais inacessível à enorme massa dos cidadãos desprovidos de grana e direitos.
Com muita frequência, o maravilhoso "está" deixa de servir: preferimos dizer que alguém "se encontra". Quase já não se põe nem se bota mais nada no Brasil: tudo é colocado, inclusive o fogo e os ovos. E por que usaríamos o verbo "ter", se temos "possuir"?
Claro que a língua é uma construção histórica. Evidente que o uso tem sempre a última palavra. Mas acredito que certos crimes não prescreverão jamais, condenados a ficarem para sempre impressos em nossa pele coletiva.
"Possuir" uma dúvida ou uma dor de cabeça é um desses delitos: aposto que nunca soará bem, em todas as suas reverberações, aos ouvidos de quem ama de verdade a língua portuguesa.
Eu sei, sabemos: os arcos históricos de longo alcance levarão o idioma para onde bem entenderem. O que nos é dado ver, como falantes mortais, é limitado. Mas no fim das contas sempre estará ao meu alcance garantir, num arroubo trágico, que jamais possuirei uma dúvida enquanto viver —mesmo tendo todas.
Como já terá percebido o leitor sagaz, estamos falando de uma modalidade de hipercorreção, fenômeno que ocorre quando o falante inseguro erra de tanto querer acertar. Na névoa gramatical que habita, ele se guia pelo que soa mais fino, mais "coisa de quem estudou" – distinção que em nosso país pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Por esse caminho, acabamos por chegar ao desastre incomparável de trocar o verbo ser por "tratar-se de", erro gramatical grave em sua ignorância de que o sujeito deste só pode ser indeterminado.
No Brasil de 2019 o risco se agravou, mas é geral. Vamos imaginar um colunista semanal de Nova York que, ao fim de uma crônica poética sobre as orquídeas de Rarotonga publicada em 8 de setembro de 2001, anunciasse a continuação da belezura.
Três dias depois, o atentado ao World Trade Center transformava o tema do sujeito num anacronismo destinado a soar ofensivo à sensibilidade dos leitores. Notícias espetaculares desse tipo tendem a virar monotemas, exigindo pitacos inadiáveis do colunista imprevidente.
Não quero comparar a queda das Torres Gêmeas à divulgação das conversas comprometedoras de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Guardadas proporções imensas, ambos são casos explosivos, mas o desmoronamento da dupla do Paraná é menos surpreendente.
Também não pretendo descumprir minha promessa. Só me vejo obrigado a fazer certas adaptações, que de resto até podem, quem sabe, deixar mais clara a tese das "Colocações" originais.
A tese é a seguinte: temos no Brasil uma mistura de domínio precário da norma culta, fruto de uma educação canhestra em todos os níveis, com uma necessidade mais ou menos generalizada de impressionar o interlocutor, tentando assegurar a golpes de vocabulário um lugar ao sol numa sociedade violentamente desigual.
Um dos resultados desse quadro é a preferência nacional pelo termo mais pomposo, a construção mais rebuscada, tudo que pareça menos popular e portanto mais inacessível à enorme massa dos cidadãos desprovidos de grana e direitos.
Com muita frequência, o maravilhoso "está" deixa de servir: preferimos dizer que alguém "se encontra". Quase já não se põe nem se bota mais nada no Brasil: tudo é colocado, inclusive o fogo e os ovos. E por que usaríamos o verbo "ter", se temos "possuir"?
Claro que a língua é uma construção histórica. Evidente que o uso tem sempre a última palavra. Mas acredito que certos crimes não prescreverão jamais, condenados a ficarem para sempre impressos em nossa pele coletiva.
"Possuir" uma dúvida ou uma dor de cabeça é um desses delitos: aposto que nunca soará bem, em todas as suas reverberações, aos ouvidos de quem ama de verdade a língua portuguesa.
Eu sei, sabemos: os arcos históricos de longo alcance levarão o idioma para onde bem entenderem. O que nos é dado ver, como falantes mortais, é limitado. Mas no fim das contas sempre estará ao meu alcance garantir, num arroubo trágico, que jamais possuirei uma dúvida enquanto viver —mesmo tendo todas.
Como já terá percebido o leitor sagaz, estamos falando de uma modalidade de hipercorreção, fenômeno que ocorre quando o falante inseguro erra de tanto querer acertar. Na névoa gramatical que habita, ele se guia pelo que soa mais fino, mais "coisa de quem estudou" – distinção que em nosso país pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Por esse caminho, acabamos por chegar ao desastre incomparável de trocar o verbo ser por "tratar-se de", erro gramatical grave em sua ignorância de que o sujeito deste só pode ser indeterminado.
[Fonte: www.folha.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário