quarta-feira, 20 de março de 2019

Tradutora de 'Os meninos de Nápoles', de Roberto Saviano, explica como transpôs fala das gangues


Solange Pinheiro recorreu a gírias e marcas de oralidade para recriar, em português, o linguajar dos garotos

 O escritor italiano Roberto Saviano


 
Escrito por Ruan de Sousa Gabriel

Acostumada à malandragem dos brasileiros, que não se acanham de jurar por Deus ou por quem quer que seja, a tradutora Solange Pinheiro se espantou ao perceber que, em Nápoles, jurar pela mãe é coisa séria. Solange traduziu “Os meninos de Nápoles”, romance do escritor italiano Roberto Saviano sobre uma gangue de adolescentes que prestam serviços à máfia, jogam vídeo game, perdem tempo nas redes sociais e repetem o tempo todo (em bom dialeto napolitano) “adda murì mammà”. A tradução para o português seria “quero que minha mãe morra” ou “pela alma da minha mãe”, mas essas soluções pareceram muito acanhadas a Solange. “Juro por Deus” também não era melodramático o suficiente.   

No esforço de reproduzir em português a veemência e a devoção dos napolitanos por suas mães sem soar artificial, Solange optou por “juro pela alma da minha mãe”, “juro por tudo que é sagrado”, “que um raio caia na cabeça da minha mãe” e até por alguns palavrões. Quando um dos meninos, boquiaberto com a valentia de um chefão mafioso, solta um “adda murì mammà”, Solange traduz por “puta que pariu, que esse homem tem colhão”.

Boa parte dos diálogos de “Os meninos de Nápoles” são escritos em dialeto napolitano. Para manter o estranhamento que a fala dialetal causa nos leitores italianos pouco familiarizados com o napolitano, Solange recorreu a gírias e marcas de oralidade para recriar, em português, o linguajar próprio dos meninos.

– O Brasil não tem dialetos. Apesar das muitas diferenças de vocabulário, um amazonense e um gaúcho conseguem conversar sem grandes problemas. Já o italiano e o dialeto napolitano tem diferenças não só de vocabulário, mas também de estrutura, embora tenham a mesma origem latina – explicou Solange ao GLOBO. – Na tradução, optei por marcas de oralidade porque elas são razoavelmente espalhadas pelo Brasil e pelas classes sociais.

Em português, os meninos de Nápoles falam “cê” em vez de “você”, esquecem os plurais, escorregam na conjugação dos verbos e arriscam umas gírias: “Velho, o que é que nós faz?” (“mo' che facciamo?”), “a gente vamo fazer” (“ce la facciamo”), “cê tá ligado” (“cioè”).
– “Cioè” seria traduzido por “ou seja”, “a saber”, “quer dizer” ou “então, depende muito do contexto. Mas, como eram adolescentes, pensei na hora no famoso “cê tá ligado”, para deixar o texto mais natural – disse. – E o “velho” é porque já me acostumei a ser chamada de “velho” por amigos mais novos. Suponho que o seja comum entre jovens com menos de 25 anos. Já ouvi muito “velho” nos ônibus da USP.
Solange mestre, doutora e pós-doutora pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Os dialetos e as variantes linguísticas sempre foram o foco de suas pesquisas. No mestrado, ela estudou o socioleto (variante linguística falada por um determinado grupo ou classe social) de Yorkshire, que aparece no romance “O morro dos ventos uivantes”, da inglesa Emily Brontë (1818-1848). Solange é autora de uma tradução do romance que mantém, em português, o contraste entre o inglês padrão do narrador e o fala dialetal de alguns personagens. A tradução foi publicada pela Martin Claret.
No doutorado, Solange estudou a criação de neologismos na obra de Ariano Suassuna (1927-2014). E, no pós-doutorado, investigou as possibilidades – e impossibilidades – de tradução do dialeto siciliano usado pelo escritor Andrea Camilleri.
Solange sublinha que tudo o que o leitor estranhar na tradução, por se afastar do português culto e escolar, não é erro nem esquisitice do tradutor, mas uma tentativa de dar conta de um fenômeno linguístico.
– Quem não é do mundo da tradução costuma achar que tudo o que está fora da norma culta é errado e não nem fundamento. Tudo que parece “errado” na tradução tem razão de ser. Os fenômenos linguísticos têm base, as mudanças não são aleatórias – afirmou. – O público leitor ainda é muito influenciado pelas noções de “certo” e “errado” aprendidas na escola. Está na hora de acabar com esse preconceito linguístico.


[Foto: GUSTAU NACARINO – fonte: www.oglobo.globo.com]

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