Solange
Pinheiro recorreu a gírias e marcas de oralidade para recriar, em português,
o linguajar dos garotos
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O escritor italiano Roberto Saviano
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Escrito por Ruan
de Sousa Gabriel
Acostumada à malandragem dos brasileiros, que não se acanham
de jurar por Deus ou por quem quer que seja, a tradutora Solange Pinheiro se
espantou ao perceber que, em Nápoles, jurar pela mãe é coisa séria. Solange
traduziu “Os meninos de Nápoles”, romance do escritor italiano
Roberto Saviano sobre uma gangue de adolescentes que prestam serviços
à máfia, jogam vídeo game, perdem tempo nas redes sociais e repetem o tempo
todo (em bom dialeto napolitano) “adda murì mammà”. A tradução para o português
seria “quero que minha mãe morra” ou “pela alma da minha mãe”, mas essas
soluções pareceram muito acanhadas a Solange. “Juro por Deus” também não era
melodramático o suficiente.
No
esforço de reproduzir em português a veemência e a devoção dos napolitanos por
suas mães sem soar artificial, Solange optou por “juro pela alma da minha mãe”,
“juro por tudo que é sagrado”, “que um raio caia na cabeça da minha mãe” e até
por alguns palavrões. Quando um dos meninos, boquiaberto com a valentia de um
chefão mafioso, solta um “adda murì mammà”, Solange traduz por “puta que pariu,
que esse homem tem colhão”.
Boa
parte dos diálogos de “Os meninos de Nápoles” são escritos em dialeto
napolitano. Para manter o estranhamento que a fala dialetal causa nos leitores
italianos pouco familiarizados com o napolitano, Solange recorreu a gírias e
marcas de oralidade para recriar, em português, o linguajar próprio dos
meninos.
– O
Brasil não tem dialetos. Apesar das muitas diferenças de vocabulário, um
amazonense e um gaúcho conseguem conversar sem grandes problemas. Já o italiano
e o dialeto napolitano tem diferenças não só de vocabulário, mas também de
estrutura, embora tenham a mesma origem latina – explicou Solange ao GLOBO. –
Na tradução, optei por marcas de oralidade porque elas são razoavelmente
espalhadas pelo Brasil e pelas classes sociais.
Em português, os meninos de Nápoles
falam “cê” em vez de “você”, esquecem os plurais, escorregam na conjugação dos
verbos e arriscam umas gírias: “Velho, o que é que nós faz?” (“mo' che
facciamo?”), “a gente vamo fazer” (“ce la facciamo”), “cê tá ligado” (“cioè”).
– “Cioè” seria traduzido por “ou
seja”, “a saber”, “quer dizer” ou “então, depende muito do contexto. Mas, como
eram adolescentes, pensei na hora no famoso “cê tá ligado”, para deixar o texto
mais natural – disse. – E o “velho” é porque já me acostumei a ser chamada de
“velho” por amigos mais novos. Suponho que o seja comum entre jovens com menos
de 25 anos. Já ouvi muito “velho” nos ônibus da USP.
Solange mestre, doutora e
pós-doutora pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Os dialetos e as
variantes linguísticas sempre foram o foco de suas pesquisas. No mestrado, ela
estudou o socioleto (variante linguística falada por um determinado grupo ou
classe social) de Yorkshire, que aparece no romance “O morro dos ventos
uivantes”, da inglesa Emily Brontë (1818-1848). Solange é autora de uma
tradução do romance que mantém, em português, o contraste entre o inglês padrão
do narrador e o fala dialetal de alguns personagens. A tradução foi publicada
pela Martin Claret.
No doutorado, Solange estudou a
criação de neologismos na obra de Ariano Suassuna (1927-2014). E, no
pós-doutorado, investigou as possibilidades – e impossibilidades – de tradução
do dialeto siciliano usado pelo escritor Andrea Camilleri.
Solange sublinha que tudo o que o
leitor estranhar na tradução, por se afastar do português culto e escolar, não
é erro nem esquisitice do tradutor, mas uma tentativa de dar conta de um
fenômeno linguístico.
– Quem não é do mundo da tradução
costuma achar que tudo o que está fora da norma culta é errado e não nem
fundamento. Tudo que parece “errado” na tradução tem razão de ser. Os fenômenos
linguísticos têm base, as mudanças não são aleatórias – afirmou. – O público
leitor ainda é muito influenciado pelas noções de “certo” e “errado” aprendidas
na escola. Está na hora de acabar com esse preconceito linguístico.
[Foto: GUSTAU NACARINO – fonte: www.oglobo.globo.com]
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