Se crianças
cantando o hino nos inspiram, já pensou se elas o entendessem?
Escrito por Sérgio Rodrigues
Que a garotada cante na escola o
hino nacional, símbolo oficial da República, me parece normal, provavelmente
até desejável. Em meus tempos de estudante não me limitei a ele: também o hino
da bandeira e o da Independência, este composto por d. Pedro 1º, frequentavam
nosso repertório.
Estávamos
na ditadura militar, que gostava de patriotismo e de patriotada, mas não me
ficou nenhum trauma. Em defesa contra a chatice, trocávamos a letra do hino da
Independência: "Japonês tem quatro filhos...".
O hino nacional já me marejou os
olhos muitas vezes, o que é próprio do gênero. Até o hino dos outros tem poder:
quem não se arrepia quando o bar inteiro canta A Marselhesa para os nazistas em
"Casablanca"? Na história da rede de afetos entre ouvido, coração e
hino, introduziu-se esta semana um elemento grotesco, efeito que o ministro Ricardo Vélez
Rodríguez tem demonstrado apreciar.
Já
submetida a recuo parcial, e
depois a recuo total, a
carta em que ele convoca as escolas a filmar alunos cantando o hino e termina
com o slogan de Bolsonaro tem
ecos fascistas óbvios.
Tomara
que o ministro não consiga perturbar a relação das novas gerações com o hino.
Arrepios futuros dependem dela, e não me surpreenderia que a própria ideia de
Brasil, em alguma medida, também. Porém...
Tendo
surgido o assunto, convém reconhecer que nosso hino é estranho. A escola
poética que o moldou, o parnasianismo, coqueluche na época, ditou uma letra
artificiosa e rebuscada até o ponto de ser incompreensível.
Quer
dizer: estamos falando de um "símbolo nacional" que não entendemos
direito, que exclui de seu círculo de sentido o povo que diz representar.
Acaba, assim, por simbolizar bem mais do que pretendia.
Palavras raras e fraseado cheio de inversões fazem da letra de Osório
Duque-Estrada —vencedora de um concurso em 1909 e oficializada em 1922— um
exemplo do pernosticismo bacharelesco e excludente que marca nossa cultura
oficial. Como escreveu Graciliano Ramos em "Memórias do Cárcere": "Para
que meter semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do céu?"
Calma,
leitor patriota: Graciliano e eu somos tão brasileiros quanto qualquer um. Não
acho que isso deva impedir ninguém de criticar um exemplar curioso do gênero
hino, que além do mais só se tornou oficial há menos de um século.
Para
começar, como é longo! A melodia de Francisco Manoel da Silva é herança da
monarquia —foi composta em 1831 para celebrar, com outra letra, a
abdicação de Pedro 1º— e não é bem marcial. Falta-lhe o convite direto à ação e à
glória. Nosso hino é uma peça colorida e loquaz.
A
gravidade típica dos hinos, os acordes que ascendem com segurança solene, a
violência gráfica contra o inimigo —nada disso existe na canção que o
Brasil sacramentou no ano em que a Semana de Arte Moderna pregava em seu
estilo, para sempre, uma etiqueta de brega. O hino já nasceu velho.
Não
sejamos injustos. Um ponto a favor da peça é justamente seu pacifismo.
"Verás que um filho teu não foge à luta/Nem teme quem te adora a própria
morte", o mais perto que chega da guerra, é um brado viril —de defesa, não
de ataque— afogado em gemidos de apaixonado.
Nossos
bosques, o sol da liberdade em raios fúlgidos, o Cruzeiro, berço esplêndido,
verde-louro, terra mais garrida, no teu seio mais amores. Louve-se o amor
risonho e límpido do poeta por seu país. Mas que seria melhor se os brasileiros
entendessem, seria.
[Fonte: www.folha.com.br]
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