Fetichista, o adjetivo 'novo' embala e engambela a
humanidade há séculos
Escrito por Sérgio Rodrigues
O
culto do novo é velho. Um grego chamado Homero —ou as gerações de poetas
anônimos embutidos nesse nome— já observava na "Odisseia", muitos
séculos antes de Cristo, que o número musical mais aplaudido era sempre o
mais recente.
O
interesse despertado pela novidade se reflete nas palavras que nomeiam
o que é notícia. Hoje pouco usamos "nova" nessa acepção, mas a
boa-nova, a notícia auspiciosa, mantém viva uma associação presente em
diversas
línguas, do latim medieval "nova" ao francês "nouvelles"
e ao inglês "news".
Se isso é notícia antiga, só nos últimos dois ou três séculos virou
cacoete de uma época de progresso tecnológico desembestado sair colando o
adesivo "novo" nas coisas do mundo.
Que a busca do novo já começava a virar neurose no
século 18, comprova-o uma ponderação do filósofo Denis Diderot em 1762:
"Só Deus e alguns raros gênios conseguem forjar continuamente o
novo". Ou seja: calma, pessoal. Na maior parte das vezes, estaremos no
lucro se aprendermos a reproduzir bem o já sabido.
"Novo" e suas traduções ("new", "nouveau",
"neu" etc.) fizeram a carreira brilhante que se viu. Pelo menos na
cultura ocidental, ficamos viciados na musa das vanguardas, aquela que
promete simplesmente reinaugurar a história.
Mais que desejável, o novo passou a ser nossa única saída, o que vai nos
libertar do passado com seus protocolos que caducam cada vez mais depressa —a
princípio a cada 50 anos, depois a cada 20, dez, um...
O envelhecimento nos morde os calcanhares. A obsolescência ridiculamente
rápida de nossos telefones não deixa ninguém esquecer: o novo é um valor em
si, mas envelhece correndo.
O jeito é fugir para a frente. Para a frente fugimos até nos momentos
—felizmente raros— em que a realidade dá um cavalo de pau, o cenário gira 180
graus à nossa volta e acontece de, fugindo para a frente, irmos cada vez mais
para trás.
O Brasil, estrela grandalhona do Novo Mundo, é só mais um fiel seguidor
desse culto. No entanto, é provável que o peso do novo seja ainda maior em
nossa cultura, que preza menos que outras a tradição.
Além de relativamente curta e escassa de heroísmo, nossa história de
ex-colônia escravocrata portuguesa habita um cercadinho escolar sobre o qual
a sociedade guarda um silêncio entre constrangido e abestalhado.
Das glórias que temos, raras e por isso mais valiosas, fazemos pouco.
"A cada 15 anos, o povo brasileiro esquece o que aconteceu nos últimos
15 anos", disse o genial Ivan Lessa, também ele em processo de
esquecimento.
Nossa relação apaixonada com a palavra "novo(a)" pode ser
demonstrada assim: daria para contar uma versão bem razoável da história do
Brasil, dos anos 1950 para cá, só com coisas que a trazem no nome.
Bossa nova. Novacap. Cinema Novo. Neoconcretismo. Novos Baianos.
Cruzeiro novo, cruzado novo. Nova República. Nova matriz econômica. As
novinhas. O Novo. E, por fim, estrela de um ano tumultuoso, a nova política
do governo Bolsonaro.
Está claro que essa "nova política", que se oporia à
"velha" de um Congresso fisiológico, é uma mistificação: conjunto
vazio, trata-se da simples negação da negociação política. Subscrevo os
argumentos de Carlos Melo, do Insper, em artigo publicado terça-feira (26)
nesta Folha.
Só faltou dizer que, como palavra-fetiche, "novo(a)" é das
mais fortes que há. Embalando —e engambelando— a humanidade há séculos, não
dá pinta de envelhecer tão cedo.
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