«Há uma ideia generalizada
de que o Natal é a comemoração do nascimento de Jesus. Desculpe estragar a
festa, mas Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro nem há 2018 anos. Então
vejamos.
No tempo do Império Romano, havia uma festa dedicada a
Saturno (deus grego Cronos/tempo e da agricultura), denominada de Saturnalia,
marcando o solstício de inverno. Era uma data muito importante para os povos
agrícolas, como o caso dos romanos. Uma festa popular, para agradar os deuses e pedir
que o inverno fosse brando e o Sol retornasse ressuscitado, no início da primavera, o renascimento da vida. O culto solar era celebrado nos dias 24 e 25
de dezembro, data de nascimento da divindade. Era um período de suspensão do
trabalho, de visitar parentes e amigos, de ser generoso, solidário, de oferecer
prendas. Isso lembra o Natal, não?
No século IV, o politeísta imperador Constantino
converte-se, oficializa o cristianismo e nasce, assim, a Igreja Católica.
Absorveu e ressignificou práticas pagãs diversas; neste caso, o festejo pagão
da Saturnalia, transformando-o numa celebração cristã. O papa Gregório XIII, no
século XVI, com a criação do calendário gregoriano, fez o resto. A partir daí,
o nascimento de Cristo (que não nasceu no dia 25 e ninguém sabe a data exata)
começa a ser celebrado pelos cristãos.
Portanto, o Natal não existe, pelo menos não da forma
como a maioria imagina – o nascimento do menino Jesus.
Em que se transformou, hoje, esta antiga data pagã?
Uma cultura do consumo. Capturada pelo comércio, a data é
para vender coisas, na sua grande maioria supérfluas. Uma agressiva propaganda
na televisão, jornais, revistas, na internet, provoca uma azáfama, planos,
listas de compras, centros-comerciais lotados, lojas abarrotadas de gente,
ávidas para comprar. As crianças de hoje, exageradamente mimadas, exigem e
obtêm, um sem-número de prendas. Às vezes, são tantas que não as conseguem
abrir todas ou valorizam mais as embalagens do que os próprios brinquedos.
É a época dos políticos e governos, maioritariamente
corruptos, que passam o ano a roubar e a esbanjar os impostos e, nesta data,
mandam belas mensagens e participam em jantares junto com os pobres, com os sem
abrigo, miseráveis estes que os próprios políticos e agentes do governo criaram
(ou ajudaram a criar) ao desviar o dinheiro que poderia garantir a comida e o
bem-estar deles o ano todo. É lógico que esta ‘solidariedade’ natalina dos
políticos deve ser sempre acompanhada por uma ampla cobertura da imprensa.
É a época das pessoas famosas, do jet-set,
atores/atrizes, jogadores de futebol, que passam o ano a ganhar milhões e a
sonegar impostos (prejudicando os contribuintes e os mais pobres), aparecerem
na TV em programas ‘beneficentes’ para dar a entender que são solidários. Ficam
sempre bem vistos perante a sociedade.
As autarquias gastam imenso dinheiro com enfeites de
Natal e deixam os desabrigados a dormir na rua. Por exemplo, Lisboa gasta todos
os anos mais de um milhão de euros, quantia que dava para abrigar/proteger,
tirar da rua, definitivamente, todos os moradores de rua da cidade.
Todos, decisores políticos ou não, deviam assistir o
emocionante filme Cardboard Boxer (2016) para ter uma ideia da vida
miserável destes excluídos da sociedade. Mas há outros marcantes filmes do
género: deixem para lá o já cansativo Sozinho em casa (1990), que
repete todos os anos, e assistam The Saint of Fort Washington (1993), Accidental
Friendship (2008), The Soloist (2009), Time Out of Mind (2014),
alguns baseados em dramáticos factos reais e todos expondo, de maneira super-realista, a extrema dureza da vida de uma pessoa sem um lar para chamar de seu
e sem um Shelter (2014), um endereço fixo, para mandar uma carta ao
Pai Natal.
O que podemos fazer então para celebrar o Natal? Simples:
é ser (genuinamente) solidário com os mais necessitados e, seguindo os
verdadeiros ensinamentos de Cristo, respeitar e amar uns aos outros. E, se
pensarmos bem, por que é que temos de esperar pelo Natal para fazermos isso?
Ah, e o mais importante de tudo: não precisamos de dizer a toda a gente e
postar no Facebook as fotos da generosidade. Não se esqueçam da lição de Antoine
Saint-Exupéry, no Principezinho: “o essencial é invisível aos olhos”.
Professor de Sociologia, Universidade da Beira Interior
[Fonte: www.observador.pt]
Sem comentários:
Enviar um comentário