"A inteligência artificial torna o trabalho humano cada vez mais obsoleto; 'Brás Cubas' é o limite?"
Escrito por Sérgio Rodrigues
Nossa espécie anda obcecada com a
inteligência artificial, e isso é natural. Vemos com angústia novas geringonças
e algoritmos se encarregarem de um número cada vez maior de atividades que eram
desempenhadas por gente.
Ficaremos
todos desempregados? Ou, em termos mais cabeçudos, qual é o limite para a
obsolescência humana, se é que há um?
Na
área que interessa mais de perto à coluna, já existem programas capazes de
produzir com razoável eficiência textos básicos, denotativos, em ordem direta.
Notícias secas de jornal, por exemplo.
Será
que isso nos autoriza a supor que surgirá um romance escrito por um computador
e capaz de ombrear artisticamente com "Memórias Póstumas de Brás
Cubas"? Em caso positivo, quando?
Não
faltam entusiastas da inteligência artificial para apostar que as respostas a
essas perguntas são "Sim, claro!" e "Em breve". Contudo, há
evidências de que a notícia de jornal e o romance machadiano não são dois pontos
numa linha reta de complexidade crescente. São planetas distintos.
Em
artigo de abril na revista americana "Wired", bíblia das novas
tecnologias que ajudou a fundar, Kevin Kelly desafia o coro empolgado –ou
apocalíptico– dos artificialistas. Seu ceticismo dá o que pensar.
O
artigo, "O mito de uma A.I. super-humana", é longo e merece leitura
integral. Dedica-se a desmontar ponto a ponto algumas suposições acríticas que
acompanham a crença num futuro inteiramente dominado pela inteligência
artificial. Reproduzo as três "verdades" que interessam aqui:
1.
A inteligência artificial já está se tornando mais inteligente do que nós.
2.
Vamos transformá-la numa inteligência de alcance universal, capaz de
desempenhar qualquer função, como a nossa.
3.
Podemos fabricar inteligência humana com silício.
Kelly
sustenta que todas essas ideias são mitos. Uma paráfrase de seus argumentos:
1.
Não sendo a inteligência uma dimensão única, mas um conceito infinitamente
complexo que estamos longe de mapear, "mais inteligente do que os
humanos" é uma ideia sem sentido. Esquilos, por exemplo, têm uma memória
que humilha a nossa para os muitos milhares de pontos onde enterraram nozes.
2.
As pessoas não têm mentes de alcance universal e os computadores também não as
terão. Quanto mais genérica e multifuncional for uma inteligência artificial,
pior será seu desempenho em tarefas específicas.
3.
Pensamos com nossos cérebros e nossos corpos, auxiliados por uma rede de
impulsos bioquímicos que guiam decisões –inclusive na forma de
"intuições". A imitação desse tipo de pensamento por outros meios
será limitada pelo custo, e a principal vantagem da inteligência artificial é
ser distinta da nossa.
Não
tenho uma resposta para a charada do rival artificial de Machado. Desconfio,
porém, que os argumentos de Kelly situem a ideia num horizonte puramente
mítico.
Em
2012, o crítico canadense Stephen Marche publicou uma boa reflexão sobre os
limites do "big data" nos estudos literários. "A literatura",
escreveu, "não pode ser tratada expressivamente como informação.
Literatura não é informação. É o contrário de informação".
Não
vou dizer que o futuro super-humano seja uma balela. Que sei eu? Só acho que a
literatura, sendo radicalmente humana, já não caberá ali.
[Foto: Isaac Lawrence/AFP
– fonte: www.folha.uol.com.br]
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