Manifestantes exibem
cartaz pedindo intervenção militar durante ato na região da avenida Paulista
Escrito por Sérgio Rodrigues
A crise brasileira assusta pela
amplitude: é política, econômica, institucional, moral e quantos adjetivos se
quiser acrescentar. É uma crise de linguagem também. Talvez não seja este o
menor dos problemas.
Faz
tempo que a linguagem –o conjunto de símbolos com que tentamos dar conta do
mundo, um do outro, de nós mesmos– foi rebaixada à segunda divisão de nossas
preocupações.
Vista
como acessória, mero instrumento ou reflexo de instâncias mais sérias na
administração da máquina-mundo, ela seria o domínio da irrelevância que no
máximo distrai, representada pela literatura, ou da retórica que no mínimo
engana, arte de políticos e marqueteiros.
Sem
o poder de iluminar a escuridão que outras épocas lhe atribuíram, o isqueirinho
Bic que restou desse fogo de Prometeu se apequenou diante do que, segundo
todos, importa de verdade: finanças, tecnologia, ciência, planejamento
econômico e outras concretudes de um mundo adulto e sem frescura.
Convém
repensar essa hierarquia. Não para rebaixar as dignas atividades do parágrafo
anterior, mas para revalorizar a linguagem sem a qual elas correm o risco de
girar em falso num universo esvaziado de sentido.
Fabricar
sentido é pedreira, sempre foi, e num tempo de mudanças tão aceleradas fica
mais desafiador. "As coisas para as quais encontramos palavras são as que
já dominamos", escreveu Nietzsche.
A
frase aponta a liga de sucesso e fracasso em que é moldada a linguagem: com ela
domamos o mundo chucro, mas este nunca para de dar pinotes e exigir novas
formulações.
Ninguém
precisa de filosofia para perceber que o Brasil (eu ia dizer o mundo, mas sejamos
modestos) chafurda num atoleiro de palavras disfuncionais. A impressão de que
chegamos –ah, agora chegamos mesmo!– a um beco sem saída tem muito a ver com
isso.
Nosso
brejo semântico apinhado de vaquinhas amplia seu rebanho toda vez que um
liberal é chamado de "fascista" e um populista de centro-esquerda, de
"comunista".
Ou
quando os arautos do "golpe" tratam como denotativo esse uso figurado
da palavra, enquanto a turma que suspira por "intervenção militar"
evita chamar seu objeto de desejo pelo nome inescapável de golpe.
Nossa saúde cognitiva desce mais um degrau a cada negação cínica da evidência ululante, cada divergência de opinião tratada como falha moral, cada afago na cabeça do bandido pelo qual torcemos.
Não,
neutralidade não existe: a guerra simbólica nunca vai dar trégua. Mas sem um
mínimo solo comum, pactuado, social, as palavras tombam como mariposas úmidas e
até uma guerra simbólica decente é impossível. Vira zona.
A
lendária "palavra justa" perseguida por Gustave Flaubert não é justa
só por ser exata. É justa por fazer justiça também.
Reconstruir esse solo comum não vai ser mole, mas a velha sabedoria cristalizada nos provérbios pode ajudar. Quando a Bíblia diz, no Deuteronômio, que não se devem usar "dois pesos e duas medidas", está perto do xis da questão.
Anos atrás, começou a circular na internet a lenda de que a expressão correta é "um peso e duas medidas". Como se as fontes históricas não existissem e a linguagem pudesse ser recriada na base do voluntarismo ignorante. Se não foi essa a origem de todo o problema, que lhe sirva ao menos de metáfora.
[Foto: Eduardo Anizelli – fonte: www.folha.com.br]
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