Escrito por Sérgio Rodrigues
Está aberta a temporada de caça à
palavra-síntese de 2016, e vale palavrão. O dicionário "Oxford"
largou na frente com uma candidata forte: "pós-verdade". Não quer
dizer que a disputa esteja decidida. Novos vocábulos continuam sendo propostos
mundo afora, e no Brasil mal começamos a procurar um rótulo sucinto para este
"annus horribilis". Não faz parte da nossa cultura, mas talvez devesse fazer.
Consta que a tradição de eleger palavras do ano nasceu em 1971
numa sociedade de estudos linguísticos da então Alemanha Ocidental. A língua
inglesa pulou no bonde no início dos anos 1990, com a boa lista da American
Dialect Society –que, como de costume, só divulgará a palavra de 2016 em
janeiro.
Não se tratava, a princípio, da busca de um vocábulo encharcado do
espírito do tempo, da "atmosfera" dominante em um conjunto de 365
dias. Procuravam-se novidades, termos que, inexistentes ou marginais até então,
tivessem conquistado multidões e penetrado na corrente principal do idioma.
Só neste século o aspecto de síntese do "Zeitgeist" foi
incorporado à cultura midiática como pitéu de fim de ano, ao lado de
retrospectivas e listas de mortos ilustres.
A maioria dos dicionários que entram na brincadeira não levam em
conta a novidade da palavra, mas sua pertinência.
O "Oxford" procura um equilíbrio entre os dois aspectos.
Desde que começou a eleger sua palavra do ano, em 2004, consagrou vocábulos e
expressões como "pegada de carbono", "selfie" e, ano
passado, algo que nem era um signo verbal: o emoji que chora de tanto rir.
Há três semanas, o mais importante dicionário da língua inglesa
voltou ao reino do verbo. Elegeu o substantivo "post-truth",
"pós-verdade" –cunhado nos anos 1990, mas de uso restrito até
recentemente– como tradução de um ano que teve Trump, "brexit" e não
sei mais quantas provas de que, num mundo em que as redes sociais formam a
opinião pública, algo profundo mudou.
Políticos mentem desde o início dos
tempos, mas o desmentido costumava cobrar um preço alto. Hoje há indícios de
que o apelo à emoção dos eleitores por meio de versões parciais, quando não
totalmente falsas, sobrepujou a crença de que temos um problema quando as
"ideias não correspondem aos fatos", como disse Cazuza.
Fazer a ideia corresponder aos fatos é pré-requisito de qualquer
candidata a palavra do ano. Mesmo que isso signifique abrir mão da novidade. O
Dictionary.com, dicionário digital americano, escolheu semana passada um termo
dicionarizado há mais de um século: "xenofobia", sentimento de temor
ou ódio ao diferente, em especial a estrangeiros.
O tradicional "Merriam-Webster" não faz bem uma escolha,
mas confere o título ao verbete com maior número de consultas online. Até o mês
passado a liderança estava com "fascismo", o que levou o dicionário a
fazer pelas redes um apelo meio patético para que os leitores pesquisassem
palavras mais leves.
Foi atendido. A disputa está aberta.
Tudo isso deixa claro que a barra pesou. Estranho pensar que há
apenas um ano o "Oxford" surpreendia o mundo ao escolher uma não
palavra. A provocação era boa, mas soa amena demais. Hoje as lágrimas daquele
emoji não seriam de felicidade.
[Fonte: www.folha.com.br]
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