Estava na "capa" do UOL ontem: "Medo de
ser assassinado atinge 3 em 4 brasileiros; 67% de jovens temem a PM". Por
favor, veja o ponto e vírgula, prezado leitor. Que faz ele aí? É correto o seu
emprego?
Antes que nos detenhamos na questão do uso desse sinal de
pontuação, convém dizer que, antes do "(Des)Acordo Ortográfico", a
grafia oficial era "ponto-e-vírgula", com dois hifens (ou hífenes),
como se vê.
O "(Des)Acordo" acabou com o hífen nos
compostos de três ou mais elementos que não nomeiem espécies botânicas ou
zoológicas. Tradução: o hífen nos compostos de três ou mais elementos só existe
nos nomes de bichos e vegetais, como "jacaré-de-papo-amarelo",
"acácia-da-austrália", "flor-da-quaresma",
"macaco-da-meia-noite" etc.
É sempre bom lembrar as bizarras exceções
("pé-de-meia", "arco-da-velha", "água-de-colônia"
etc.).
Posto isso, voltemos ao título do UOL e ao ponto e vírgula
que há nele. Esse título diz respeito a uma pesquisa realizada pelo Datafolha e
publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O tema da pesquisa,
obviamente, é a violência no Brasil, que, como se sabe, é um país pacífico,
solidário etc., etc., etc.
As duas informações que há no título são distintas: a primeira diz
respeito ao medo de ser assassinado, sentimento de 76% dos entrevistados; a
segunda diz respeito ao temor que 67% dos jovens entrevistados têm da Polícia
Militar.
As informações são distintas, mas integram o mesmo assunto, o
mesmo campo, o mesmo território, por isso foi empregado (corretissimamente) o
ponto e vírgula, que separa o primeiro bloco, completo, autônomo etc., do
segundo bloco, também completo, autônomo etc.
O papel do ponto e vírgula é sempre o de separar partes autônomas
de um todo, isto é, blocos que apresentam sentido e informação completos e
pertencem ao mesmo conjunto, ao mesmo assunto.
Seria inconcebível pensar no ponto e vírgula em algo como
"Quando penso no teu rosto; fecho os olhos de saudade" (do poema
"Marcha", de Cecília Meireles, que Raimundo Fagner adaptou, musicou e
transformou em "Canteiros"). Por que seria inconcebível o ponto e
vírgula depois de "rosto"? Porque a oração "Quando penso no teu
rosto" é subordinada à oração "Fecho os olhos de saudade" (que é
a oração principal). O que cabe aí é uma vírgula, que foi justamente o que fez
Cecília.
Agora veja o trecho todo: "Quando penso no teu rosto, fecho
os olhos de saudade; tenho visto muita coisa, menos a felicidade."
O caro leitor notou que a grande Cecília Meireles empregou o ponto
e vírgula? O caso é semelhante ao que vimos. Embora Cecília pudesse ter optado
pelo ponto final, a sempre inspirada escritora carioca optou pelo ponto e
vírgula, o que certamente deixou mais forte a mensagem, por integrar os blocos
que falam do mesmo sentimento (perda, falta, desalento, tristeza).
Para sentir a força que o ponto e vírgula confere ao fragmento de
Cecília, imagine-o com ponto final. A redação, que pareceria primária,
certamente seria frouxa, fraca.
Lamentavelmente, a escola hoje pouco se ocupa dessas coisas (ou
simplesmente não se ocupa). O efeito dessa falta de referência a esses e a
outros aspectos da construção de um texto é devastador. Capta-se menos do que
se poderia captar dos encantos do que se lê. É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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