terça-feira, 13 de setembro de 2016

Intolerância na Web e impunidade digital



Escrito por Patrícia Peck

O Brasil vive um momento de crise moral e ética que é muito mais grave que a crise econômica, pois sua mudança exige investimentos em educação e combate à impunidade. De certo modo, com o tempo, vamos recuperar a confiança dos investidores internacionais e o País voltará a crescer. Mas, além disso, precisamos, principalmente, resgatar o compromisso com a transparência e o cumprimento das leis, que são requisitos para uma sociedade mais segura, saudável e sustentável.

Temos visto a escalada da violência na internet nacional, praticada pelos próprios usuários, uns contra os outros, com discursos de ódio, racistas e discriminatórios, acompanhada do maciço aumento dos crimes eletrônicos, que se tornam cada vez mais ardilosos e sofisticados. Vivemos, na verdade, uma “internet do terror”, extremamente perigosa para crianças e adolescentes, que não deveriam de forma alguma navegar sozinhos nesta rua digital repleta de pedófilos que ficam à espreita para atacar nos jogos on-line.

A insegurança digital cresce na mesma medida em que os brasileiros têm acesso aos dispositivos móveis, pois faltam campanhas públicas de conscientização sobre segurança da informação que ensinem as pessoas como se proteger nesta sociedade conectada. Aumentaram os casos dos novos golpes que envolvem aplicativos falsos gratuitos nas lojas oficiais da Apple Store e Google Play para disseminar vírus e arquivos maliciosos em celulares e tablets, do ataque chamado rasomware, em que há o sequestro dos dados com senha ou criptografia e, ainda, o fake trade que envolve a prática de falsa identidade empresarial para negociar importação ou exportação de produtos ou serviços de grandes empresas brasileiras junto ao comércio internacional, com negociações fraudulentas por e-mail e telefone.

A recente Lei do Marco Civil da Internet (nº 12.965/14) determinou que o direito de conectar-se é um direito essencial de cidadania do brasileiro. No entanto, inclusão digital sem orientação é risco! Apesar de esta legislação dispor sobre o dever público de realização de campanhas educativas, ainda falta vontade política para executar estas ações que poderiam gerar um grande resultado no aumento da proteção dos indivíduos e dificultar as ações dos criminosos nos meios digitais. Com efeito, a população bem preparada e treinada torna-se mais vigilante e consegue evitar os novos perigos digitais.

Portanto, precisamos que os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, operem de forma harmônica e integrada, cada um cumprindo com o seu papel. Ainda, é necessário ser implementado um plano de educação continuada através da criação de cursos que possam atualizar as autoridades sobre estes novos temas tecnológicos que desafiam o Poder Público.

Ainda precisamos de leis mais completas e severas para combater o crime eletrônico e estabelecer um modelo punitivo mais adequado a este novo perfil de bandido versão 3.0 (que já ataca em aplicativos e mídias sociais). Há necessidade de harmonizar as leis, para que sejam removidas algumas incoerências, como as trazidas pelo Marco Civil da Internet que, de certo modo, acabou por limitar o poder de polícia e a atuação do Ministério Público na investigação de autoria, retirando sua autonomia para resposta imediata.

No tocante às leis, há muitas condutas ilícitas que não foram devidamente tipificadas, o que acaba favorecendo o crime eletrônico, tais como o estelionato digital, a criação de vírus e arquivos maliciosos. Também há condutas que deveriam prever punição maior, pois as penas baixas contribuem com a impunidade, como ocorre na prática de crimes de falsa identidade, falsidade ideológica e documental na web. Grande parte das fraudes tem, justamente, este elemento no seu modus operandi.

Muitos casos de crimes eletrônicos não resolvidos ou em que o infrator ficou impune se devem ao fato de que nosso modelo de identidade é extremamente falho no Brasil e não temos uma identidade digital obrigatória, que permita que saibamos quem é quem do outro lado da tela, da interface gráfica. Infelizmente, é muito fácil ser qualquer um, se passar por outra pessoa ou agir de forma anônima na internet no âmbito nacional. E tudo isso se torna uma vantagem para as quadrilhas agirem.

Também precisamos de uma autoridade pública capacitada, com ferramentas tecnológicas capazes de fazer o policiamento digital da internet de forma preventiva e com poderes para agir imediatamente ao sinal de um ilícito ou incidente, para pegar os infratores em flagrante on-line, literalmente, com a “mão na máquina”.

Precisamos estabelecer o procedimento de revista digital para verificar dispositivos como celulares e tablets de indivíduos suspeitos no momento da abordagem policial, o que já foi implantado em muitos países, como Estados Unidos e Inglaterra (desde as Olimpíadas de Londres), haja vista que a evidência do crime não estará anotada em um papel no bolso, mas, sim, muito provavelmente, em mensagens trocadas via WhatsApp, por exemplo, no celular do indivíduo.

O Judiciário precisa estar preparado com varas especializadas para poder julgar com maior técnica e mais rapidamente os casos digitais que exigem uma justiça em tempo real. E o Executivo precisa de ações que permitam maior proteção da população, especialmente com a realização de campanhas educativas. Por que, quando alguém adquire um celular, já não recebe junto uma cartilha com orientações sobre os cuidados para o uso seguro do equipamento? Por que as indústrias de telecomunicação e tecnologia, diferentes das demais, não têm o dever de orientar na segurança do uso de seus produtos e serviços? Por que algumas proteções não são requisito de fábrica, como ocorre com a indústria automotiva? Afinal, o antivírus é o cinto de segurança da era digital. Não se pode ficar sem ele.

A Sociedade Digital trouxe como grande mudança para todos nós o fato de que tudo fica documentado! Logo, vivemos a era da prova escrita e das “testemunhas máquinas”. Se pudermos nos reorganizar, há condições técnicas e jurídicas propícias para que o Brasil se torne um país mais seguro.

Tudo o que se publica em ambientes digitais, inclusive em comunicadores instantâneos, mensagens de celular e aplicativos, como o WhatsApp, fica documentado. E a prova escrita é sempre mais forte do que a prova oral. Hoje, o crime tipificado pelo Código Penal brasileiro é o de difamação, que seria você expor a honra ou a imagem de uma pessoa pela internet, e que poderia ser associado a outros, como discriminação, incitação ao crime, ameaça. A liberdade de expressão tem que ser praticada com responsabilidade. Muitas vezes é uma questão de escolha certa do conteúdo para expressar um pensamento que, mesmo que seja uma crítica, tem que ser manifestada de forma respeitosa, para não ser considerada abuso de direito. Sem educação em ética e leis, corremos o risco de a liberdade de expressão e o anonimato digital tornarem-se verdadeiros entraves na evolução e sustentabilidade da sociedade digital, pois tornam o ambiente da internet selvagem e inseguro.

Não podemos confundir liberdade com irresponsabilidade. Uma coisa é dizer que não gosta de uma pessoa, não aprova a conduta de um político, outra coisa é xingar, comparar a pessoa com animais de forma pejorativa; isso é abuso e tem que ser coibido. O dano à honra é irreparável e a reputação não tem preço. O que mais prejudica a liberdade de todos é o abuso de alguns, a ofensa covarde e anônima. Isso não é democracia. Não podemos continuar coniventes com as más práticas e a impunidade, o que tem gerado uma imagem muito ruim do Brasil e dos brasileiros perante a comunidade internacional, prejudicando inclusive nossos negócios e a economia.

[Este artigo foi publicado originalmente na Revista Jurídica Consulex, edição 456 - fonte: www.idgnow.com.br]

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