Livro compõe paisagem com quatro elementos, rio, estrela, árvore
e pássaro
Por
MARIANA IANELLI
Com trajetória de mais de 20 anos de poesia, Ricardo Lima
publica seu sexto livro, Desconhecer, que reúne poemas de 2009 a 2012. Quem já frequentou a obra do
autor vai reconhecer os motivos que lhe são recorrentes, o cíclico do tempo
lastreando o cíclico de certas imagens e pensamentos. Aos 40 (a idade é uma das
marcações temporais que aparecem nos livros), Ricardo revisita suas árvores, o
apagamento da cidade onde impera o céu, a capina do quintal, a montanha, o
grito dos pássaros. Também a lua reaparece, observante, imensa – e, nela, “a
pegada que o homem deixou para quem?” –, a presença algo nostálgica da
infância, uma obsessão pela finitude, a atenção aos sentidos do corpo e uma
solidão cujo tamanho se mede pela sombra.
Dos livros do
poeta, curiosamente, este é o que se mostra mais solar. Mesmo que “azul do
luto” deixe aí sua marca, é o amarelo que fala mais alto, numa acácia, num ipê,
numa “lâmpada de canteiro”, na manhã que “nasce clara e grave”. E porque todos
os poemas se conversam, o sentido de um livro ensolarado remete ao verso de Primeiro Segundo, de 1994:
“Escrever é o sol de se expor”. Isso converge para a epígrafe de Clarice
Lispector que inspira o recente título: “Quando a gente se revela, os outros
começam a nos desconhecer”.
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Temas. Finitude e solidão no sexto livro
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Nesse
desnudamento do ser e de seu entorno, quando “chega o momento de não entender”,
nesse despojamento em que as coisas e as letras igualmente vão perdendo
sentido, até o ponto em que o poeta as desconhece, “perder” é um ato poético
que tem o mérito da madureza. E Ricardo explora esse “perder” em sua acepção
vária: “Perder ainda jovem / um amor / depois / (...) / a criança que cresceu /
com a idade / dentes e os últimos rios de cabelo / (...) / a hora / na manhã
que não tocou / a intimidade na roupa sem perfume / e o olhar / inutilmente /
na paisagem do futuro”. Um “perder” que é também um entregar-se, um render-se
ao tempo diário dentro do espectro total do tempo de uma vida, desconhecendo o
que existiu antes dessa vida e o que virá depois dela.
Assim,
perdendo, mais e mais se despojando, o poeta se atém ao mínimo elementar, em
versos breves, abolindo inclusive as vírgulas, trabalhando com pausas internas,
de modo a compor uma paisagem com alma cada vez mais nua e viva em seus quatro
elementos: estrela, árvore, rio e pássaro. Escassa, a palavra “completa / o
silêncio / do que a dor não matou”, de maneira que há também o que ainda não se
perdeu, mesmo para alguém “de rotina precária”, que “não quer nunca mais / a
tragédia da promessa”. Há um céu escuro que ainda se abre, há “uma árvore cinza
que rejuvenesce”, “muda / vigorosa”, há uma planta que “se impõe”, e “na carne
/ tremor”. O futuro, que o poeta admite desconhecer, surpreendentemente talvez
seja feito de um mundo cultivado por ele: “Neto do meu filho / (...) / sombra
de algumas sementes / (...) uma encosta / com floresta”. Sem tragédia, “perder”
e “perder-se” é o que faz vingar para Ricardo Lima um novo começo, e é sempre o
que o traz de volta.
* MARIANA IANELLI é poeta e autora de O amor e depois, entre outras obras
DESCONHECER
Autor: Ricardo Lima
Editora: Ateliê (104 págs.;R$ 40)
[Fonte: www.estadao.com.br]
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